quarta-feira, 31 de março de 2010

E a margarina mudou II



Enquanto a margarina continua a exibir a mudança de padrão da família brasileira com muito humor e uma boa dose de coragem, Tomás continua firme em seu propósito de me garantir um par e, de quebra, uma família mais completa. As estratégias do pequeno alcoviteiro incluem olhares indiscretos, inquirições sobre toda a sorte de homem que cruza o meu caminho e pequenas dicas sobre roupas e acessórios apreciados pelo público masculino.


- Mãe, você fica muito mais bonita de vestido... Mulher de calça não fica tão bem.

- Mãe, solta os cabelos que desse jeito não está muito bom.

Este tipo de dica é o que há de mais sóbrio em sua alcovitice. Ao sair de casa, se o pensamento não for desviado, ele já entra no elevador olhando para os lados. Caso um vizinho se atreva a descer com a gente e ele passe da minha altura, é encarado pelo pequeno menino e analisado de cima a baixo. E um sorriso no canto da boca e uma piscada de olho encerram a cena. Sozinhos novamente, ele me diz:

- Viu que bonitão? É maior que você!

Se o pobre do vizinho resolver trocar mais do que as duas palavras do praxe bom dia comigo, ai, ai... O menino usa a cabeça para fazer o afirmativo até descermos em passeio lento do sétimo andar até a portaria. Quando o rapaz sai de cena, ele fala.

- Hum... Tão querendo namorar, hein?

E diante da minha negativa, ele “entrunfa” e lamenta.


- Mãe, eu queria tanto que você tivesse um namorado.

- Mas, meu filho, tenha calma. As coisas não são assim. A gente não conhece as pessoas desta forma.

- E conhece de que jeito?

- De vários jeitos.

- Mãe, quer saber de uma coisa? Você não sabe nada de namorados.

- Por que, filhote? É claro que eu sei!

- Ah, se você soubesse, já tinha casado. Não sei o que faço contigo!

Sobre a propaganda, ele disse:

- Se fosse eu... Humpf! Ainda bem que eu não como margarina.

Neste final de semana, quando anunciei que tinha um re-namorado, ele fez “iupi” e concluiu:

- Ainda bem! Pensei que no final ia ter que ficar com você para que não ficasse sozinha. Ufa!

Este é o meu menino, que faz bravata com meu estado civil, é leitor de conto de fadas, pregador de Santo Antônio, consumidor de propaganda de sabão em pó, alcoviteiro sem preguiça e admirador de números pares.

quinta-feira, 25 de março de 2010

7 anos


Existe um menino que não é igual a mil. Este menino, de olhos vivos e sorriso largo, chegou a este mundo no dia 28 de março de 2003. Naquele dia, eu estava em uma festa de aniversário. Era uma sexta-feira, chovia, estava escuro, muito escuro, como costumam ser as noites do mês de março. Eu espera o menino há muitos dias, que já tinha até desistido de sua chegada. Mas o telefone tocou avisando que ele se anunciava e eu saí rapidamente ao seu encontro, para lhe abrir as portas, caso fosse preciso.


Dei muita, muita sorte, porque ao abrir as portas, ele abriu meu coração. Quando o vi, na primeira vez, fui inebriada por um amor maior do mundo e senti que queria viver aquilo também. Digo isso sempre ao Pedro, filho de amigos queridos, porque a sua chegada marcou a encomenda inconsciente do Tomás. O que separa os dois são exatos 9 meses. Nasceram no mesmo ano, o que no horóscopo chinês significa que eu e Carla fomos abençoadas com meninos cheios de vontade, com energia para viver e com força o suficiente para entrar em guerras imaginárias travadas com limites considerados por eles obscenos demais para quem preza, com grande maestria, a liberdade.

O Pedro, que foi o primeiro amigo do Tomás na barriga e depois dela, travou estas guerras e outras também. Foi forte e guerreiro ao se separar da sua mãe, minutos depois de ter nascido, para lutar por sua própria vida na UTI fria de um hospital, andou de ambulância, berrou ao sair do centro cirúrgico, encarou o pai com olhos firmes em um breve encontro no corredor. O menino comprido e branquelo disse, desde de os seus primeiros segundos, ao que veio. Não ia resmungar pelo que não tinha, ia gritar pelo que queria.

O primeiro ano do Pedro foi, assim, de descoberta e emoção para seus pais, avós e amigos. A cada nova informação sobre os limites a serem vencidos pelo meu pequeno sobrinho, minha barriga crescia e meu coração também. O Tomás ia chegar e eu descobria com alguém muito perto de mim o que significa a palavra incondicional. Não raras vezes chorei com medo de não ter dentro de mim leoa tão valente para enfrentar as dores de ser mãe, que eu via na minha amiga Carla. Mas aquela mulher que entre lágrimas arrumava ânimo para se entupir de chá mate e não deixar o leite secar, segurou nas minhas mãos quando eu fui para a maternidade, me ajudou a organizar minha nova morada e me ensinou que “limite por limite”, ela tinha os dela bem largos.

Quando o Tomás nasceu, nasceu com ele uma grande amizade. Ganhou algumas roupas de herança e muito da experiência da tia em viroses, vacinas, carrinhos, mamadeiras e cólicas. Fomos as duas telespectadoras assiduas de Barney, Backiardigans e os desenhos do gênero. Enquanto isso, as crianças trocaram entre si muito carinho, amizade e esperança. Entre as fotos favoritas dos primeiros anos de vida do Tomás, tenho guardada uma em que os dois se erguiam junto a uma estante, descobrindo, tateando, conquistando.

Quando o Tomás fez o primeiro aniversário, festa pronta, coração recheado, o Pedro não pôde ir. Foi fazer uma visita breve no hospital. Nos outros dois anos, por motivos sempre maiores, a festa perdeu o Pedro. Só no quinto aniversário, os dois estiveram juntos. Não disse a Carla ou ao Pedro, na ocasião, mas aquela foi a festa completa. O guerreiro que sempre gostou de se exibir na roupa do Batman, que nunca fez reticências para um beijo, que não se incomoda em berrar muito alto, que não se esquiva em gargalhar quando acha possível, que erra como os meninos da sua idade, que mata um prato de arroz e feijão sem titubear, que não desiste nem depois de olhares incrédulos, estava na festa. Pense bem...

Foram cinco anos para isso acontecer. Mas, como para o Pedro e sua família, dificuldade é coisa pequena, lá estavam eles como se nunca tivessem se ausentado. E entre fotos e risadas, vivemos os cinco anos do Tomás. Naquele dia, eu revivi os nascimentos dos dois e festejei no meu coração. Agora, passados 1 ano e 3 meses, vamos para o sétimo ano do Pedro.

- É Pedroca, tia Luisa!

Ah, é... Sétimo ano do Pedroca. Domingo à tarde, vou vestir a minha melhor roupa, entrelaçar as mãos do Tomás e ir lá para dar um beijo nele. Vou agradecer ao Pedroca por me ensinar, todos os dias, que sonhos são sempre possíveis, que nunca é fácil o quanto gostaríamos que fosse, que para cada tombo há uma mão pronta para ser estendida e que, sim, fiz a melhor escolha ao me apaixonar por ele na maternidade (se é que paixão se escolhe). Daquele dia em diante, as pessoas ficaram mais bonitas. Aprendi a olhar com ele. A olhar com outros olhos o que há de belo em todo mundo.

Obrigada, Pedroca.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Pequeno construtor

Quando o Tomás tinha pouco mais que um ano, o presenteei com um jogo de blocos de construção. A habilidade em projetar pequenas cidades, garagens e mansões marcou sua primeira infância. Com o tio engenheiro, foi várias vezes visitar obras, vencer o medo das máquinas e observar como se planeja a construção de grandes obras. Não raro observou a falta de um detalhe ou um defeito mais latente. Nunca dispensou elogios também, mas sempre garantindo que, caso fosse “o construtor da obra”, faria diferente. De presente dos mais próximos, muitas vezes ganhou legos, bloquinhos, capacetes e ferramentas. E foi construindo o seu sonho que, nesta manhã, me disse:

- Mãe, quando eu crescer vou construir uma cabana em uma ilha deserta para morarmos.

- Em uma ilha deserta? Por que, filho?

- Porque sim, mãe. Vou construir também um barco para irmos até lá.

- Mas você quer deixar tudo o que temos aqui para trás?

- Quase tudo. Vou levar algumas pessoas comigo.

- Sim. Até imagino as pessoas que irão conosco, mas quem não vai ficará triste.

- Sabe o que é, mãe? Lá na ilha deserta não vai ter esta história de conta de energia, hora de tomar banho, nem este tanto de segunda-feira que vocês inventam. Eu vou construir uma cabana para você ser livre.

(Está combinado. Vou ver com ele se tem vagas para vocês serem livres também.)

quinta-feira, 18 de março de 2010

Roteiro

Depois de um certo tempo usando o mesmo corpo, a gente se acostuma, a gente aprende, a gente formula. Se hoje tivesse que entregá-lo a outra moradora, caso fosse requisitada para outra tarefa, eu escreveria de bom grado um roteiro para a nova habitante cuidar destes ossos e músculos que comigo seguem. Assim evitaria para eles o sofrimento mútuo, o estranhamento desnecessário e perguntas que não precisam mais ser feitas.


Pediria apenas que a nova moradora se comprometesse a cuidar dele com o carinho necessário, que fosse com ele tolerante, que não lhe olhasse só os defeitos, que o contemplasse com respeito. E eu partiria feliz para uma nova jornada.

E se ela tivesse algum arroubo ou mudasse o tom de voz no meio da conversa, seria até perdoada, já que este vício é meu há algum tempo. Mas teria que ser fiel a pequenos hábitos, a um uso descontrolado de reticências e a perder o olhar na multidão.

Caso quisesse fazer uma melhora, indicaria que ensinasse a minha voz a dizer “desculpas” sem tantos calafrios.

xxxxxx

Para acordar, frestas da cortina sem reforma.

Para o melhor café, panquecas, receita guardada na memória.

Para ser, batom e rímel.

Para sair, pressa, muita pressa.

Para garantir, duas voltas na chave.

Para chegar, uma volta a mais na quadra.

Para entender, sorria, sempre. Sorria.

Para cumprir, prazo.

Para a sede, água.

Para o sono, café.

Para a fome, imaginação.

Para sofrer, ouça Aimeé Mann cantando Save me.

Para aliviar, escreva com o coração.

Para escrever, pedaço de folha dentro da bolsa e caneta emprestada na gaveta ao lado.

Para aplacar ansiedade irrevogável no seu coração, comida de mãe.

Para curar, um prato de brigadeiro e uma colher.

Para dormir, três travesseiros.

Para insônia, remédio não descoberto.

Para tristeza noturna, observar o sono profundo de quem se ama.

Para dançar sozinha, 10.000 Maniacs.

Para dançar acompanhada, Zizi Possi, último cd da pilha.

Para comemorar intimamente, brinde.

Para dias nublados, não se use.

Para recordar, “Haja o que houver”.

Para encantar, Érico Veríssimo em “Olhai os lírios do campo”.

Para entender, Clarice Lispector, em A paixão segundo G.H.

Para conhecer raízes, Mário Quintana, em As mãos de meu pai.

Para se reconhecer, Chico Buarque.

Para sorrir, fotos da cabeceira.

Para chorar, caixa guardada no maleiro, atrás das malas.

Para se proteger, manter a caixa nesta mesma altura e a escada e a coragem a uma distância seguras.

Para explodir, chuveiro.

Para negociar, paciência.

Para acalmar, telefone, tecla dois da emergência.

Para merecer, escute o silêncio recolhido no quarto.

Para temer, ratos, animais peçonhentos e covardes.

Para encorajar, veneno na última prateleira da despensa e uma boa dose de ironia.

Para joelhadas, esbarrões, torcicolo e traições, palavrão.

Para gripes, cólicas e afins, chá feito por qualquer pessoa que não você mesma.

Para emocionar-se, Girassóis da Rússia.

Para dividir, sofá.

Para rever, Casablanca.

Para se divertir, amigos.

Para trocar confidências, irmãs.

Para se enamorar, tempo.

Para tardes ensolaradas consigo mesma, sorvete de iogurte de damasco.

Para adoecer, entregue se a solidão.

Para mudar, marque um horário longo no salão.

Para emagrecer, romance.

Para emagrecer sem dupla, ligue para pessoa com a letra w da agenda e marque horário.

Para se sentir viva, regue as plantas.

Para se sentir mais viva, alimente o hamster, o único animal que lhe coube nesta vida.

Para se sentir viva sem sombra de dúvidas, beijo na boca.

Para retornar, tire os sapatos.

Para não se perder, organize.

Para se organizar, faça listas.

Para se perder, feche os olhos e rasgue as listas.

Para melhorar, reze.

Para acontecer, encomende orações.

Para encomendar orações, fale com as primeiras pessoas das letras l e m, da agenda escrita.

Para se alegrar, ouça as risadas de um pequeno homem.

Para reconhecer o pequeno homem, veja seu reflexo no espelho.

Para se preocupar, ouça os problemas dele.

Para simplificar, não responda sempre.

Para encurtar, estacione de frente.

Para garantir, diga sim.

Para amar, noites com ou sem tempestade.

* Música do post (copiando Patrícia):

segunda-feira, 15 de março de 2010

Precioso: de extremo valor, valiosíssimo, importante




Determinadas profissões exigem das pessoas que se ocupam delas bem mais do que conhecimento técnico, vocação ou dedicação. Precisa que elas se habilitem a revelar, nos outros, o que há de mais precioso. Passei duas semanas digerindo o filme Preciosa – Uma História de Esperança, ganhador de dois Oscar, no último dia 7, e cuja passagem nos cinemas de Goiânia foi mais rápida do que deveria. Duro, seco, amargo, triste, mas cheio de esperança. Como pode? Não sei, porque também não sei como determinadas situações encontram soluções nesta vida.

Mas não quero falar aqui do roteirista agraciado com um Oscar pela adaptação do livro que deu origem à película. E sim da professora que recebe a personagem título do filme, Precious Jones, em sua sala, junto a outras seis ou sete meninas com problemas sociais e vítimas de crueldade nem sempre toleráveis.

Menina, negra, obesa, adolescente, analfabeta, vítima de violência sexual do pai e de violência física e moral da mãe, analfabeta, mãe adolescente e grávida de um segundo filho. Precious chega a escola, mas como a escola pode chegar até ela?



Aquela professora tem, à sua frente, um desafio incomum de ensinar a escrever meninas/mulheres, peritas em violência e conhecedoras das entranhas da vida. Escrever se torna um detalhe, é claro... Falar de si mesmas, se aceitar, ouvir e compreender são desafios diários, que têm à frente uma jovem mulher, que precisa manter os dois pés no chão para não sucumbir à loucura daquelas histórias que sentam à sua frente, em uma pequena sala especial. Não é para qualquer pessoa.

Conversando com uma amiga, Carla, que também é professora e temeu ver o filme pelo enredo demasiado cruel, ela me falou daquela mulher que ajuda Precious a abrir uma das muitas portas fechadas em sua vida:

- Eu queria ver só para entender como a professora faz. Como o enredo dá conta de explicar o que muitas professoras têm que fazer diariamente em suas salas, com crianças vítimas de violência, sem nenhum pudor ou discernimento moral do que é certo ou errado.

Foi aí que caiu a minha ficha de que o filme é bem maior do que o drama de Precious. Aquela professora não sucumbe à crueldade de uma garota que sobrevive sonhando, que não encontra lugar no mundo, ela abre a possibilidade para que ela se veja como pessoa, como ser humano. O que a educação faz por nossos filhos, ainda pequenos, mas que algumas muitas pessoas não têm acesso no nosso mundo.

Me lembrei da entrevista do jornalista Lourival Sant´Anna, quando retornou da cobertura recente do terremoto no Haiti. Ele diz, em determinado trecho, que para seguir adiante é preciso “deixar de ser humano”. Aquilo martelou em minha cabeça, dias seguidos, de que o “ser humano” em determinadas situações pode não te deixar cumprir a sua missão. Se a professora do filme pára e chora junto com a protagonista porque esta não tem para onde ir, não tem família, não tem socorro, ela deixa de cumprir o seu papel e a sua missão maior.

Sim, muitas vezes para cumprir nosso papel, a gente precisa mais do que tocar alguém, a gente precisa mesmo fazer com que a pessoa perceba o quão preciosa ela pode ser. Acho que, de formas distintas, a professora do filme consegue fazer isso por Precious, o diretor do filme consegue fazer isso por nós, que deixamos de lado certas humanidades para tocar nossa vida tacanha e o jornalista faz pelo povo do Haiti, que precisa expor a sua miséria para se compreender como precioso.

Em tempos, a atriz MoNique ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante pela interpretação de uma mãe omissa e ausente, que permite o estupro da filha aos três anos de idade no filme Preciosa. A cena final, dela se justificando para uma transtornada assistente social, interpretada por Maria Carey, é brilhante e preciosa.

Para quem quer conhecer a experiência do repórter do Estadão, Lourival Sant´Anna, veja o vídeo completo em:

http://tv.estadao.com.br/videos,HAITI-HA-CENAS-QUE-NAO-CONSIGO-TIRAR-DA-CABECA,86257,0,0.htm

quarta-feira, 10 de março de 2010

Lá na Praça de Maio…

Quando eu for à Buenos Aires, irei visitar a Praça de Maio. Vou sentar lá e observar as avós que tomaram conta do lugar e vou pensar no que vivi desde 1977, quando nasci e quando elas se instalaram por lá. E vou pensar que quando eu fui a primeira vez à escola e minha mãe se emocionou ao me ver vestida com meu uniforme amarelo, outras 500 crianças, nascidas naquele mesmo período, estavam indo à escola também, de mãos dadas, com quem tirou delas o direito à verdade e à identidade.

Este ano, as avós da Praça de Maio da Argentina encontraram o centésimo neto desaparecido entre os anos de 1977 e 1983, durante a ditadura militar instalada naquele País. Francisco Madariaga Quintela, filho de Silvia Monica Quintela e Abel Pedro Madariaga, ambos militantes de uma organização guerrilheira, reencontrou seu pai, depois de 33 anos de vida. Reencontrou, como disse,com sua vida, com o seu passado.

Francisco viveu 33 anos com uma mentira e com vários mentirosos. Francisco se chamava Alejandro, morava com o pai militar e a mãe dona de casa e com os irmãos. Francisco não se sentia em casa, não se sentia à vontade na própria pele, não se sentia completo.

Abel perdeu Silvia, em 1977, morta depois do nascimento do seu primogênito. Abel foi exilado e voltou ao País só em 1983. Abel procurou o filho, procurou seu pedaço, procuro preencher um vazio que não lhe era tolerável.

Mas foram precisos mais de 30 anos para que se reencontrassem. Quando Francisco e Abel se abraçaram, o filho disse ao pai: eles não podiam! É. Eles não podiam. Eles não podiam tirar um filho dos seus pais, tirar uma filha de sua mãe, tirar o futuro de uma jovem médica, tirar o amor de um homem por uma mulher.

Quando eu for a Argentina, eu não irei ver nem Francisco, nem Abel, mas ficarei feliz por saber que, no País vizinho, crimes de sequestro não prescrevem, avós não desistem nunca e reencontros são sempre possíveis. Porque, às vezes, me aniquila saber que pais não reencontram seus filhos, que alguns crimes deixam de ser penalizados e que, por força da ocasião, algumas pessoas simplesmente desistem.



P.S. Voltarei a contar as histórias do pequeno, nos próximos dias, assim que a melancolia sair deste corpo. E assim que a voz, o olfato e o paladar voltarem a este corpo.

P.S. 2 Fotos das avós na Praça de Maio e de Sílvia, antes do seu desaparecimento.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Mulheres de verdade








“Trazemos no corpo

o mel do suor,

trazemos nos olhos

a dança da vida,

a morte vencida”.



D. Pedro Casadáliga e Pedro Tierra



Minha avó devia ter uns 25 anos quando saiu de Rio Grande, no Piauí em direção à Goiás, a pé, como eram feitas estas viagens no começo do século passado. O primeiro filho não contava mais de 1 ano e seguia carregado no lombo de um jumento, guiado pelos homens fortes que a acompanhavam. O segundo filho lhe ocupava o ventre sem pesar, posto que o que lhe pesava era o coração cheio de dúvidas.

Para trás, ficavam a seca, o conhecido, a miséria, a família, as tragédias... Seguiam com ela e a tropa pequena de viajantes a fé, os sonhos, a nova família, a coragem, o desconhecido. Em Goiás, depois de mês de viagem, chegaram a cidade de Porto Nacional, onde fizeram morada. Dali em diante, ela saiu do posto de filha para se tornar uma matriarca cuja delicadeza nunca escondeu a força, cuja coragem nunca deu sombra para o medo.

Minha avó teve sete filhos nascidos “da barriga” e mais uma filha semeada em seu coração. Dos sete primeiros, minha mãe foi a única mulher e a divisora de águas. A filha número cinco, que nasceu nesta ordem, por obra de destino, sempre teve o papel de ser o elo entre a primeira parte dos filhos e a segunda parte. Papel que lhe cabe até hoje.

Para colocar todos no mundo, minha avó gastou exatos 20 anos. Foram duas décadas para criar a família, o seu sobrenome e a sua história. Fincada em uma rua histórica da cidade, em uma casa de esquina, minha avó se amparava no peitoril da janela para observar, enquanto uns filhos chegavam, outros iam.

Por decisão do meu avô, que não freqüentou escola, mas via nas letras mais do que uma assinatura, todos os filhos estudaram, incluindo as mulheres. E, assim que concluíam os estudos, alçavam vôos mais altos, contemplados e guiados pelas orações de D. Ana, que entre um e outro suspiro, lhe garantiam que nada de mau lhes aconteceria antes do tempo.

Agarrada em seu terço, ela viu os filhos maiores mudarem de cidade e criarem suas próprias famílias, o filho predileto escolher como vocação a fé e os filhos menores se embaralharem na confusão política instalada no País. Sofreu ouvindo no rádio as notícias de uma repressão que aniquilava famílias, sofreu com os mexericos em uma cidade que tinha apenas oito presos políticos e destes, três eram seus filhos, sofreu quando dois dos seus foram para longe, bem mais longe do que o Piauí lhe parecia. Mas resistiu.

Resistiu para, na hora certa, dizer aos seus filhos palavras de consolo, para dizer do seu orgulho com o olhar sem desânimo, para esperá-los sem cessar, sem descrençar, sem desiludir. Não sei se, neste tempo, é possível contar quantos terços rezou, quantas velas ascendeu, quantas manhãs perdeu olhando para o fim da rua à espera de ver seus filhos regressarem.

Envelheceu, é certo. Mas resistiu também. Tinha o corpo magro, os cabelos prateados e o olhar entristecido nas fotos do dia que eles retornaram, já casados e com filhos. Eu era uma pequena garota de 3 anos, encantada com um quintal florido, um tanque que transbordava água (o que não existe na Europa) e uma avó que matava galinhas torcendo seus pescoços. Mas aquela avó ainda tinha o punho forte, a voz severa e a fé inabalável. Fez a família sentar em volta da mesa, onde não se sentava sem camisa ou com roupa de banho. Fez a oração costumeira de agradecimento. Serviu um banquete, organizado com os detalhes que não esquecia e para os filhos e o genro, botou a comida no prato. Deixou a porta fechada e lá fora, todos os que não acreditaram.

Naquela casa, tinha uma família e naquela família, tinha uma mulher que não desistia nunca e cuja memória para datas e nomes me foi doada gentilmente e cujas mãos de dedos longos, que dariam uma ótima pianista, fizeram dela uma rendeira impecável, dessas que tecem trama incontestável, a trama da vida.

A todas as mulheres que tecem suas histórias com amor e coragem, que haja mais do que um dia para se comemorar vitórias, que haja tempo para que elas sejam lembradas...

sexta-feira, 5 de março de 2010

O que não se pode evitar...



Carinho

xxxx

Gratidão
Alegria
Embalo
Tristeza
Buena Vista
Beijo
Agonia
Insônia
Wim Wenders
Tempo
Reflexo
Morte

xxxx

Carinho


Hoje é dia 5 de março. Para iluminar o tanto de Cuba que ainda resiste em você, escute e não evite sentir.