quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Por toda a vida

Tomás é neto único, o que lhe confere direitos exacerbados, quando o assunto é a avó. É ela quem lhe prepara o leite com o toddy e entrega na mão até hoje, que lhe amarra os cadarços e o enche de mimos sem fim. Eu, às vezes, desconfio que isso pode lhe estragar, mas... Eu sinto muita falta de ter tido algo assim da minha avó para reclamar. E dos mimos também fazem parte longas caminhadas, conversas intermináveis e reflexões que o acompanharão por toda a vida.

Dias desses, ela veio me contar sorrindo o diálogo travado durante a última caminhada:

- Vó, por que você tem salário se não trabalha?

- Ah, mas a vovó já batalhou muito para sustentar sua mãe e sua dinda. É a minha recompensa.

- Vó, você batalhou quando? Foi na Segunda Guerra Mundial?

É claro que ela gargalhou muito e contou um pouco sobre sua vida, sobre seu trabalho e sobre a aposentadoria.

Mas, outro dia, de mala e cuia para dormir na casa da vovó, ele volta aos livros de história e pede:

- Vó, me conta uma história antes de dormir!

- Tomás, a vovó não conhece história nenhuma.

- Então, me conta aí alguma coisa que você viu na época da ditadura militar.

Assim caminham os dois entre palavras e sentimentos construindo laços, refazendo passados imaginários e dando importância ao que tem relevo na vida.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

17 de fevereiro


17 sempre foi meu número favorito.

Por um triz de segundos não nasci na data e fui cair lá em um dia 18.

Agora 17 é referência da saudade, repetição, recomeço, refazer das malas.

Quatro vezes. E a vida ainda demora a ganhar.

Quanto tempo dura uma saudade?

A cada dia me distancio mais dos meus cinco anos e a cada dia me lembro com mais clareza daqueles dias.

Me lembro da janela pronta para pular, do nosso baú azul, da antena de TV ajeitada com um bombril, dos móveis de madeira do quarto da boneca, do uniforme amarelo.

Fico horas a divagar em cenas corridas na mente. A mordida do cachorro, a bicicleta também azul, a máquina fotográfica, os abacates enterrados na areia, o monte de revistas, o medo, a gargalhada, o tempo.

Viagem que se faz de volta nunca é tão rápida como a ida. Se demora mais a chegar.

Quando volto lá atrás, me encolho, viro pequena. Sou filha e não, mãe. Debruço em cadernos antigos para reler palavras soltas, choro dores ancestrais, peço colo, bendigo presenças ausentes, ainda pulo, ainda grito.

Mas não chego nunca onde gostaria de chegar. A viagem ao seu encontro não tem fim. É doce, mas às vezes dura. É amorosa, mas destes amores que se vive só. É perigosa, posto que é na contramão da vida.

Volto para os 20 poucos anos que um dia tive. Cabelos mutantes. Desejos também. Ideias organizadamente dispersas. Certezas tão incertas como a chuva. Paletó xadrez. Vestido azul.

Fico horas a dançar de novo contigo a valsa da minha formatura. Seus olhos vermelhos. Minhas dúvidas. A música que alegra. Os meus sonhos românticos. O começo do fim.

Acelero. Descompasso. Abro a caixa. Olhos as fotos. Revejo você no meu mar de lamentos. Refaço histórias e dou a elas o significado do meu amor. Livre autoria para o sentimento que nunca terminou.

Dou respostas por você. Invento nossas verdades. Te compro uma flor. Te rezo um terço. Ouço tuas músicas.

Me refaço das lágrimas e sigo o caminho de quem já passou.

Se você pudesse ouvir, pai, te diria sobra a falta que você me faz e como 17 ainda é o meu número favorito, por ser dia de encontrar as tuas memórias.

*Caetano e a música que embalava nossos passos.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Condicionário

Tenho um projeto de homem em casa, sagitariano, firme, nem sempre valente, tagarela, alegre e voluntarioso. Para ele, as horas não foram feitas para serem atendidas, mas para atendê-lo. Então, enquanto a mãe gostaria que ele adiantasse as atividades, ele gostaria de alongá-las, em especial, àquelas que o fazem gargalhar.

Para cada ordem bem dada (e uma mãe com ascendente em sagitário também o sabe fazê-lo) há uma firme vontade de questioná-las, revidá-las, burlá-las, refutá-las, esquecê-las, negligenciá-las. E para cada desdém, uma pequena guerra se arma no seio familiar: “porque você não fez a tarefa, porque você não limpou a pia, porque você não amarrou os cadarços, porque você não terminou o almoço, porque você não me atendeu”.

E para cada porque, uma porção de perguntas e intermináveis ideias de como poderia ser uma boa negociação entre os grandes e pequenos. “Mãe, mas ainda falta meia hora para começar a aula, não posso tomar banho depois?”; “Sabia que na Itália não se come arroz?”; “Mãe, eu também me esqueço das coisas, ou acha que é só a vovó?”.

Mas como não dá para ceder à sedução do pequeno insolente, é preciso ensinar a lição mais difícil e mais simples da vida. “Toda ação produz uma reação”. E dali brinquedos recolhidos, desenhos suspensos, tarefas refeitas, pedidos de desculpas, lágrimas e trepidações nos corações de ambos.

Eis que, dia desses, depois de assistir a uma aula de karatê impagável com os lutadores mais insubordinados do tatame, eu lhe avisei que não teria como liberá-lo para ir à casa de um colega.

- Não é possível!

- Meu filho, estamos em pé de guerra e você quer passear? Vamos ver se você consegue fazer a tarefa de casa direito para depois voltarmos ao assunto, certo?

- Ah mãe, aí você exagerou no condicionário!!!

Educar os filhos com equilíbrio, sobriedade e eficiência é o sonho de todas as mães. Mas nem sempre é possível. Exageramos, invertemos prioridades, erramos, mas não podemos nos esquecer de que a única ação que não requer condição é o amor, incondicional aos filhos. Amor que deve ser suficiente para suspender as negociações quando necessário, mas para torná-las ferrenhas diante de uma intuição mais forte. Sigo tentando aliviar no condicionário, enquanto ele segue tentando evitá-lo.

(A tarefa bem feita cumpriu o propósito de lhe garantir liberdade “condicional” para ir na casa do colega).





segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Salário maternidade


Era noite de domingo, calor lá fora, estrelas brilhando no céu, jornada de carinho vivida intensamente com quem se ama  e em noites assim, um menino de oito anos costuma pedir para dormir na minha cama. E como uma amiga querida me disse que eu devia aceitar, porque logo ele não pedirá mais, eu às vezes aceito.

E é lá na imensidão da cama, com o céu a nos vigiar da janela, entre uma página e outra do livro lido em conjunto, que ele me diz:

- Eu acho que o governo deveria pagar um salário para você ser mãe.

- É mesmo? E por quê?

- Porque mãe tem muito trabalho, tem que cuidar do filho, das coisas do filho, das coisas da escola, das coisas dos amigos do filho. Tem que levar no médico, lavar a chuteira, ensinar a ser educado. E tudo isso é muito importante.

- Sim, eu concordo. Devíamos mesmo ter uma ajuda grande para cuidar de vocês.

- Afinal, eles não dizem que as crianças são o futuro do país?

- Eles dizem... E este salário seria até quando?

- Hum... Até o filho ter 40 anos, acho que está bom.

 Nunca sei como terminar os diálogos com o Tomás, então deixo no ar, até que ele venha me perguntar sobre como surgiram as estrelas, o que farei amanhã cedo ou porque “o céu é assim”.