Convivo com isso diariamente, com a minha impaciência e com a impaciência dos que amo e também dos que não amo.
A urgência dos compromissos, uma voz mais estridente, um carro que ultrapassa o seu bruscamente, um filho que não pode esperar, uma ligação que insiste em tocar enquanto você fala, um dedo que não para de atualizar para ver se o email chega, uma caixa de correios lotada de conta, uma agenda que se conta em meses, uma escada com tantos degraus, um menino que crescer rápido, uma ansiedade sem remédio, uma infinidade de sim, um pouco uso de não, uma noite que não se dorme nunca.
Paciência é recurso esgotável e raro, muito raro.
Quando reconheço no outro o dom da paciência, não sei se me admiro ou se me zango. Eu estranho ver quem, no auge do furacão, respira fundo e continua como se nada houvesse acontecido. Eu apresso quem, no meio da vida, pede calma.
Às vezes falta neste meu corpo um pouco mais de alma.
Domingo quase normal, não fosse pela ausência das crianças em uma agenda de compromissos de adulto: um casamento e um show. Foi, digamos assim, um dia de folga para eu e namorado, que nos permitimos ser apenas namorados. Mas também foi quase normal, porque aqui dentro algumas conexões do ouvido e da boca mexeram comigo, com sentimentos guardadinhos que resolveram desembarcar no final da noite em formato de gordas lágrimas. A saudade vem e volta por aqui. Tem dias que é normal, apenas fato, como é fato que trabalho das 9 às 18 horas. Tem dias que é dolorida, arde no meio do dia e faz um grande estrago em pedaços da minha noite.
Ontem não foi de estragos, nem de fato. Senti saudades de uma forma tão melancólica, que fiquei carregada dela, como um navio pronto para desembarcar em algum porto e fazer entrega de amor atrasado. O primeiro sinal apareceu assim. Meu namorado tentou lembrar o nome de alguém, na festa do casamento, e o nome não veio. Daí, eu me lembrei que meu pai, quando encontrava um conhecido e tinha uma falha na memória, usava como recurso chamar a pessoa de “professor ou professora”. Era um sinal de respeito, para ele, afinal o cargo tinha um grande valor. Contei a historinha, rimos juntos e seguimos festa adiante.
Na festa, tinha samba e tinha Paulinho da Viola, um dos favoritos do meu pai. O coração ficou quentinho e quietinho ao ouvir. Meu pai gostaria de ter ido a uma festa assim, com samba, sem formalidade, com risos fartos e com muito “se sinta à vontade”. Já em outra música, a banda convocou os convidados a dançar. Um senhor sentado na mesa ao lado disse: “Se for o Paulinho da Viola e se você me emprestar uma caixinha de fósforo, eu vou”. Meu pai também iria. Ele batucava uma caixinha como ninguém. Fechei os olhos e ouvi o som, o som da minha infância. A caixinha Fiat Lux roxinha tamborilando nos dedos escuros do meu pai. Na boca, um riso contido.
O samba continuou, eu bebi mais do que devia e fui resolver meus problemas de glicose com os doces da mesa. A noiva fez uma belíssima escolha de servir doces típicos. E eu escolhi os meus favoritos: doce de leite e figo cristalizado, este último da lista do meu pai. Na hora que mordi, o desejo de dividi-lo ao meio foi grande. Ofereci duas vezes ao namorado, que recusou. Eu queria mesmo era dividi-lo. Dar um pedacinho ao meu pai, que amava doces como eu. Na época do figo, eles enfeitavam nossa geladeira e com ele já doente, encomendávamos figada e quindim para adoçar seus dias.
Fomos embora para um soninho que cura tudo e partimos para o show de Maria Gadu, que encerraria nosso domingo sem filhos. Ouvi atenta a apresentação belíssima da cantora, encostada em ombro quente, quando ela cantou: “Se queres partir ir embora. Me olha da onde estiver. Que eu vou te mostrar que eu to pronta. Me colha madura do pé. (...)O apego não quer ir embora. Diaxo, ele tem que querer.”
Já tem dois anos e quatro meses que meu pai foi embora, mas o apego, não. Em cada canto, em cada lugar, imagino como seria se ele estivesse aqui. Para você que sabe do que estou falando, de um desejo secreto de inverter a ordem do mundo, divido a música de Gadú, Dona Cila, que mexeu comigo em uma noite de domingo molhada de lágrimas.
Depois de um certo tempo usando o mesmo corpo, a gente se acostuma, a gente aprende, a gente formula. Se hoje tivesse que entregá-lo a outra moradora, caso fosse requisitada para outra tarefa, eu escreveria de bom grado um roteiro para a nova habitante cuidar destes ossos e músculos que comigo seguem. Assim evitaria para eles o sofrimento mútuo, o estranhamento desnecessário e perguntas que não precisam mais ser feitas.
Pediria apenas que a nova moradora se comprometesse a cuidar dele com o carinho necessário, que fosse com ele tolerante, que não lhe olhasse só os defeitos, que o contemplasse com respeito. E eu partiria feliz para uma nova jornada.
E se ela tivesse algum arroubo ou mudasse o tom de voz no meio da conversa, seria até perdoada, já que este vício é meu há algum tempo. Mas teria que ser fiel a pequenos hábitos, a um uso descontrolado de reticências e a perder o olhar na multidão.
Caso quisesse fazer uma melhora, indicaria que ensinasse a minha voz a dizer “desculpas” sem tantos calafrios.
xxxxxx
Para acordar, frestas da cortina sem reforma.
Para o melhor café, panquecas, receita guardada na memória.
Para ser, batom e rímel.
Para sair, pressa, muita pressa.
Para garantir, duas voltas na chave.
Para chegar, uma volta a mais na quadra.
Para entender, sorria, sempre. Sorria.
Para cumprir, prazo.
Para a sede, água.
Para o sono, café.
Para a fome, imaginação.
Para sofrer, ouça Aimeé Mann cantando Save me.
Para aliviar, escreva com o coração.
Para escrever, pedaço de folha dentro da bolsa e caneta emprestada na gaveta ao lado.
Para aplacar ansiedade irrevogável no seu coração, comida de mãe.
Para curar, um prato de brigadeiro e uma colher.
Para dormir, três travesseiros.
Para insônia, remédio não descoberto.
Para tristeza noturna, observar o sono profundo de quem se ama.
Para dançar sozinha, 10.000 Maniacs.
Para dançar acompanhada, Zizi Possi, último cd da pilha.
Para comemorar intimamente, brinde.
Para dias nublados, não se use.
Para recordar, “Haja o que houver”.
Para encantar, Érico Veríssimo em “Olhai os lírios do campo”.
Para entender, Clarice Lispector, em A paixão segundo G.H.
Para conhecer raízes, Mário Quintana, em As mãos de meu pai.
Para se reconhecer, Chico Buarque.
Para sorrir, fotos da cabeceira.
Para chorar, caixa guardada no maleiro, atrás das malas.
Para se proteger, manter a caixa nesta mesma altura e a escada e a coragem a uma distância seguras.
Para explodir, chuveiro.
Para negociar, paciência.
Para acalmar, telefone, tecla dois da emergência.
Para merecer, escute o silêncio recolhido no quarto.
Para temer, ratos, animais peçonhentos e covardes.
Para encorajar, veneno na última prateleira da despensa e uma boa dose de ironia.
Para joelhadas, esbarrões, torcicolo e traições, palavrão.
Para gripes, cólicas e afins, chá feito por qualquer pessoa que não você mesma.
Para emocionar-se, Girassóis da Rússia.
Para dividir, sofá.
Para rever, Casablanca.
Para se divertir, amigos.
Para trocar confidências, irmãs.
Para se enamorar, tempo.
Para tardes ensolaradas consigo mesma, sorvete de iogurte de damasco.
Para adoecer, entregue se a solidão.
Para mudar, marque um horário longo no salão.
Para emagrecer, romance.
Para emagrecer sem dupla, ligue para pessoa com a letra w da agenda e marque horário.
Para se sentir viva, regue as plantas.
Para se sentir mais viva, alimente o hamster, o único animal que lhe coube nesta vida.
Para se sentir viva sem sombra de dúvidas, beijo na boca.
Para retornar, tire os sapatos.
Para não se perder, organize.
Para se organizar, faça listas.
Para se perder, feche os olhos e rasgue as listas.
Para melhorar, reze.
Para acontecer, encomende orações.
Para encomendar orações, fale com as primeiras pessoas das letras l e m, da agenda escrita.
Para se alegrar, ouça as risadas de um pequeno homem.
Para reconhecer o pequeno homem, veja seu reflexo no espelho.
Quando pequena, brinquei de bonecas e de casinha sem saber do futuro. Treinei direitinho, mas depois o treino não me serviu para muito. Me tornei mais do que esperava. De filha e irmã, ampliei o leque para jornalista, mãe, artesã, amiga, ex. No desafio de ser, tenho que usar todos os dias muita paciência, persistência e sobretudo, amor. Na nova família, somos mais do que pensávamos, temos mais do que tínhamos anteriormente.
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