quarta-feira, 27 de junho de 2012

Os olhares que salvam

Alex Ramos da Silva cruzou o olhar com o de muita gente, na última semana, nas edições nacionais dos jornais. Ele foi responsável pela proeza de encontrar a menina Brenda, 4 anos, depois de duas semanas desaparecida. Coincidência não prevista no destino, ele, que era vizinho da família dela, a viu na rua com um andarilho. Cruzaram o olhar e, de repente, ela foi salva.




Sim. Foi o olhar de Alex que a salvou, antes mesmo que as mãos dele pudessem-na resgatar. Porque o olhar do outro sempre pode nos salvar. Está nele o reconhecimento de nossas dores, a piedade, a compaixão, a humanidade, o elo com a vida.


Muitas vezes, uma mãe ou um pai, ao ver o filho pequeno tombar, diz:

- Não olha, que daí ele não chora!

É também com os nossos pais que nos permitimos as lágrimas mais sinceras depois de uma grande perda. O emprego que se foi, o fim do namoro, o assalto. Calamos a dor até que, aos sermos olhados por eles, desatamos o nó.


Sim. Choramos quando os outros nos olham. Nos percebem. Sem o olhar do outro, muitas vezes seguimos sem declarar nossos infortúnios, temendo o tamanho da dor das nossas feridas.


Foi assim com Brenda ao ser olhada por Alex, que heroicamente a devolveu a dignidade de ser ela mesma, de ter uma mãe a sua espera, analfabeta como o seu próprio redentor, de ser indefesa como todos somos na infância e em outros momentos da vida.

A dignidade de Alex em devolver a Brenda sua própria identidade fez com que outros o percebessem na sua juventude entrecortada de pequenas tragédias que nem sempre valem a manchete do jornal. Que alguém olhe por ele.

Segue o depoimento dele ao jornal Folha de São Paulo:


“Tenho 17 anos, sou órfão, analfabeto e trabalho como repositor de estoque numa bomboniere. É meu segundo emprego. O primeiro foi de camelô, na 25 de março. Mas cansei de correr do "rapa" (batidas policiais).


Conheço Brenda desde que nasceu. É que somos vizinhos. Meu padrasto, que é pintor, foi à Bahia. Minha mãe, empregada doméstica, morreu quando eu tinha 12. Meu pai nem sei quem é.


No fim de semana estive em Aparecida, com amigos. Fizemos uma corrente na sala dos milagres para essa menina. Levei até uma foto.


Às vezes, toco bateria na igreja, mas não sou religioso.


Estava conversando com minha patroa sobre a viagem quando olhei pra rua e vi a Brenda apontando o dedo pra mim. Magra, suja, de touca e com o cabelo recortado.


Foi um milagre, era para eu estar no depósito. Aí até brinquei: "Essa é a menina que sumiu". A patroa falou: "Não é ela não". Daí, pedi permissão e saí.


Fui correndo e encontrei os dois parados na lanchonete ao lado, pedindo comida. Nervoso, falei alto: "Essa menina você roubou". O desconhecido, que parecia um morador de rua, respondeu: "Não, é minha filha, vou buscar o RG dela na carroça".


Daí, de repente, ele saiu correndo. Agarrei a menina para ele não levar.


Quando ele foi embora, ela começou a chorar, acho que com medo de ficar sozinha. O pessoal saiu atrás, mas não conseguiu pegá-lo. Uma mulher acalmou a menina.


O PM veio e pegou meu RG. Falei: "E agora? E se não for a menina?" Perguntamos seu nome e ela respondeu.


Mas foi pela TV que eu soube que era ela mesmo, quando o PM apareceu dando entrevista. Meu patrão comentou: "Você a achou, mas olha quem está recebendo saudação". E o pior, dizia que a achou numa outra rua.


Fui à delegacia e falei que o rapaz estava mentindo. Quando o encontrei, ele disse que já tinha falado tudo e não precisava de mais nada.


Mas o circuito de câmeras da loja registrou a cena inicial, e quando mostrei ao delegado, começou a confusão toda de novo. Assinei um boletim de ocorrência. (Questionado pela Folha, o delegado Paulo
Cesar de Freitas, do 6º DP, no Cambuci, diz desconhecer a confusão.)


É claro que me senti um herói. Mas por várias vezes já chamei ambulância para ajudar, quando vi acidente na rua. Meu sonho era ser bombeiro, mas vai ser difícil.


Às vezes, fico pensando na vida, vem tudo, o serviço, minha mãe, esse negócio da alfabetização, caramba, tudo numa pessoa só, foda.


Para mim tudo continua na mesma. Quem agora precisa se salvar sou eu.”



Depoimento à Folha de São Paulo, publicado em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1111147-jovem-conta-como-encontrou-menina-desaparecida-em-sp-leia-depoimento.shtml.






Foto Joel Silva/Folhapress

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Educação conect@da: os desafios impostos aos pais



Sou de uma geração nascida e criada antes da internet, o que incluiu aulas de datilografia na adolescência e laboratório de redação com máquinas não elétricas na faculdade. No último ano, se não me falha a memória, tivemos acesso aos primeiros computadores da universidade, que eram grandes caixotes capazes de “datilografar”os textos, mais rápido.

E foi assim, já na década de 90, que a modernidade chegou, junto com os celulares do tipo tijolo e os bips. Nunca tive um bip, mas bipei muita gente por aí. No trabalho, ainda usei por muito tempo o aparelho de fax, que hoje só serve quando a gente quer tirar uma xerox ou pedir uma fatura extraviada. São peças de museus que eram hits a apenas duas décadas atrás.

No computador, a gente escrevia a matéria, usava disquete, salvava na rede, mas nada, nadinha de internet. Para comunicações estilo msn, era comum ter um arquivo oculto onde teoricamente você poderia mandar bilhetinhos que teoricamente só seriam lidos pelo destinatário, na hora que você saísse do documento, é claro.

Mais tarde, Uol e mais algum outro site lançaram os chats. Meu Deus! Para amores incuráveis cuja madrugada era curta e a conta telefônica muito longa, era o paraíso. Hora tal, sala tal, cidade tal, codinome tal e sorte na conexão discada, porque podia cair a qualquer momento. E foi assim que comecei a usá-la, trabalhando em redação e terminando o ofício de contar histórias em casa (muitas delas salvas em disquete!).  Mas os anos passaram e a tecnologia velozmente tomou conta da nossa vida profissional e pessoal. Orkut, twitter, facebook, linkedin. Ainda dá para saber quem veio primeiro mas duvido que os nossos filhos saberão.

As fotos do primo estão na internet, a atualização de status da melhor amiga, também, o último encontro do grupo, a mudança de emprego do colega, as notícias da última hora (opa! do minuto, por favor), as discussões importantes, os aniversariantes do dia. Meu trabalho está lá, na internet. Minha agenda, também. Algumas coisas já foram salvas nas nuvens e as fotos e crônicas perambulam por aí compartilhando angústias e alegrias.

Mas, em um lugar, a presença dela anda me perturbando, em vez de ajudar: na infância do meu filho. Tentei poupá-lo ao máximo por achar que ele ainda não é maduro suficiente para compartilhar ou gastar sua vidinha naquele espaço. O plano de internet residencial completará dois anos, em outubro. Antes, só eu acessava. Além do medo de pedófilos e coisas assim, tenho receio do cyberbulling, da perda de tempo e dos diálogos invasivos na rede.

Nosso combinado atual libera duas manhãs conectado, o que inclui uma modesta conta de msn,jogos, tabela de campeonato e youtube, e algumas horas no final de semana. Ele bota para quebrar, nestes momentos, e, muitas vezes quer deixar o parque para depois assistindo vídeos de outros players. Então, imagino que ele, no domínio de um perfil, não deixará passar batido nada.

Mas isso deixou de ser suficiente pela pressão dos colegas e porque meu rapaz é um curioso nato. Agora, o bordão do momento é: quero uma conta no facebook. E todo dia uma negociação enorme adia o desejado, mesmo que haja argumentos contrários, como a necessidade desta geração ser mais interativa do que a minha, as tecnologias que deverão ser dominadas por eles estarem além do meu alcance de consumo e visão, a presença dos amigos e parentes na rede, entre tantas outras preocupações.

Um dia desses, depois de mais uma acalorada discussão no mundo real, fui buscar ajuda com os especialistas. E li Rosely Sayão, que fala desta geração que vive presa na vida real e livre no mundo virtual, onde nem sempre sabe proteger sua intimidade e privacidade. Para ela, o desafio dos pais é ensinar a interatividade no dia adia, na padaria, na escola, na casa dos parentes e garantir que as redes só serão usadas no momento em que elas terão maturidade suficiente para escolher também as suas companhias virtuais.

E é assim que Tomás terá que se contentar com uma educação não tão conect@da diretamente às redes sociais, mas ainda esperando que haja espaço para o limite, a paciência e o tempo ideal de cada coisa.

Um dia irá acontecer, mas que não seja amanhã.

Crédito da foto:Shutterstok

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Consciência de cada um

Para amenizar a rotina do filhote, que estuda à tarde e três vezes por semana, pela manhã, sai cedo para a casa da avó onde é levado às atividades extras, tenho uma ajudante que fica com ele duas vezes por semana. A ideia é que, nestes dois dias, ele não precise acordar tão cedo e não lamente tanto deixar as cobertas. Porque é sofrido para nós dois. Acorda emburrado e de péssimo humor. Mas, desde que a ajudante começou, no início do semestre, foram poucas as vezes que sai de casa sem que ele já estivesse desperto. E ele acorda com a corda toda, feito um grilo falante ou um cachorro em dia de passeio no parque.


Dias atrás, quando me disse bom dia, eu pedi para que ele perdurasse mais na cama e ouvi:

- Mãe, eu descobri que não tenho dono.

- Sei...

- A minha dona é a minha consciência e fazer o que se ela me manda acordar para aproveitar melhor o dia?

- E ela manda você estudar também?

- Não. Minha consciência é minha e não sua, mãe. Ela quer que eu brinque muito.


E seguimos cada um com a sua consciência. A minha sempre me faz perder o sono por motivos que, aparentemente, não serão solucionados na madrugada. Como, às vezes, eu gostaria de ter somente oito anos...

terça-feira, 5 de junho de 2012

O que importa



Uma intensa rotina de trabalho, com mais de 12 horas fora de casa, me afastou do blog e de outras coisas mais. Faltou tempo para a gentileza, a criatividade e a observação. Mas, se é temporada de matar um leão por dia, é preciso se perdoar das ausências e se reconhecer na coragem de quem levanta cedo da cama.

Depois dos 30 e poucos, já fiz e refiz muitos ciclos e sei que eles duram apenas o suficiente para nos mostrar novos caminhos e que a vida é adaptação. Nestes momentos, não podemos nos esquecer do que importa e o que importa não é o que está fora, mas o que a gente guarda aqui dentro.

Em um dia, a gente desmonta o quebra-cabeça que aos poucos se encaixa tão bom e resolve montá-lo de outra forma. Porque só no brinquedo infantil é que as peças se agrupam apenas de uma forma. Na vida real, é possível montar de várias formas, usando ou não todas as peças.

E, como é dia de retomada, vou compartilhar uma história de João Pedro que me faz lembrar o que importa. A mãe dele, minha colega de profissão, Ana, sempre troca figurinhas comigo. Dividimos o espanto diante da construção do ser humano e a admiração pela autonomia com que eles vão se esboçando homens na nossa frente.

Dia desses, o pequeno da Ana, enquanto cumpria a ingrata tarefa de escovar os dentes, saiu com essa: 


- Mãe, sabia que este corpo não é meu. Deus só me emprestou. O que eu sou mesmo é o que tem dentro dele.

xxxx
E é por ser um empréstimo, que devemos fazer um bom uso dele, seja na hora de enfrentar uma jornada intensa de trabalho ou na hora seguinte, quando acolhemos em nossos braços quem amamos. E é preciso saber, como João Pedro, que o que importa de fato é o que está além do reflexo no espelho.

sábado, 31 de março de 2012

Manual de uma princesa


Para ser uma princesa, não é preciso carregar coroa ou cetro brilhante, mas ter nos olhos o brilho de quem sabe.

Para ser uma princesa, não é preciso sair de um conto de fadas, mas crer nelas piamente.

Para ser uma princesa, não é preciso ter berço de ouro, mas escolher os braços ideais para lhe acolher o sono.

Para ser uma princesa, não é preciso sorrir sempre, mas ter lágrimas que comovam.

Para ser uma princesa, não é preciso ter destino mágico, mas ser mágica para quem a tem como destino.

Para ser uma princesa, não é preciso sempre dizer sim, mas abraçar quem te escolheu.

Para ser uma princesa, não é preciso de lorotas sobre príncipes ou saias bufantes e rosas, mas buscar o final feliz.

* A princesa Elisa, em registro alegre de Adriana Cândido.

segunda-feira, 5 de março de 2012

De olhos fechados

Catedral de Porto Nacional


Na vida, são muitos os lugares que se tornam parte das nossas histórias: a nossa primeira casa, o quarto da infância, a praça das primeiras brincadeiras, a escola de pátios enormes diante da sempre pouca estatura dos pequenos, a escadaria dos primeiros tombos, a praia de areia branca e águas seguras... E assim seguem sendo em nossa memória, revisitada na hora da saudade, encontrada na página dos álbuns, relembrada nos almoços de domingos.

Os lugares se tornam tão fortes e abrigam tantas lembranças, que seu cheiro, cor e tamanho tomam forma de gente, de amigo querido e saudoso, de aconchego e de encontro jamais esquecidos. E, nos sonhos, no inverso do que acontece na vida, são eles que nos visitam. E é assim que acontece, nas minhas noites de muito sono, em que a casa dos meus avós retorna para ser morada dos meus sentimentos. De olhos fechados chego ao quarto reservado para as visitas, pulo a janela da cozinha, tomo banho no tanque, sujo meus pés no piso encerado de vermelho,bebo água fresca do pote de barro, me refaço menina na terra da minha criancice.
Vó Ana, Mariana, Ana Maria e Andressa

Na rua que levava para o rio, na esquina com a ladeira, em Porto Nacional (TO), o casarão com janelas e portas pintadas de verde era a morada das minhas férias de julho e dos feriados mais longos do ano. Lá, meus avós Ana e Sabino, minha tia Maria José, a ajudante fiel Celina e minha prima Ana Maria nos esperavam de braços abertos, do alto da escada, enquanto descarregávamos a bagagem depois de uma noite inteira de viagem de ônibus.

Eram 30 dias em uma das cidades mais quentes do País, mas cujo calor era abrandado pelas águas frias e limpas do Tocantins, antes da barragem. Descíamos diariamente a ladeira para brincar na beira da água, ver os mais aventureiros pular dos paredões formados por pedras na margem do rio, fazer castelos com gotinhas de areia molhada, recolher as pedrinhas do fundo do rio, atravessar de “voadeira” em direção à ilha...
O pôr-do-sol mais lindo que já vi


Também era tempo de encontrar primos e tios, vindos de várias partes do Brasil, para dividir os dias, a mesa, a comida caseira da avó, as damas do meu avô, o chamego dos bichanos espalhados nas cadeiras feitas de fio, o espaço para sentar na escada da sala, o cheiro do biscoito frito no fogão à lenha, a ida na missa no final do domingo, o cocoricó das galinhas no fundo do quintal, a infinidade de visitas que lhe conheceu os pais ainda crianças.
Ana Cristina, eu, Marcelo e uma amiga
Ana Maria, vó Ana, Joaquim,
Maurício, eu, Maria e Pedro

E os primos eram um capítulo a parte, porque eram de todas as idades. Dos mais novos aos mais velhos, era imposta a nós a regra da convivência, da boa convivência. Uns protegiam os outros e ensinavam as regras, as possibilidades, o mergulho mais fundo, o esconderijo melhor, o nado mais ágil.

Nos lugares mais distantes, vou de olhos fechados encontrar a alegria e o aconchego dos meus tempos de menina, a água fria do rio, os braços quentes das pessoas queridas, as brincadeiras na rua do Cabaçaco, o som do rio no fundo da rua, o cheiro das mangas no quintal, as estripulias dos amigos, os dias infinitos e a memória que ainda alimenta dias felizes da minha vida.
O famoso paredão


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Por toda a vida

Tomás é neto único, o que lhe confere direitos exacerbados, quando o assunto é a avó. É ela quem lhe prepara o leite com o toddy e entrega na mão até hoje, que lhe amarra os cadarços e o enche de mimos sem fim. Eu, às vezes, desconfio que isso pode lhe estragar, mas... Eu sinto muita falta de ter tido algo assim da minha avó para reclamar. E dos mimos também fazem parte longas caminhadas, conversas intermináveis e reflexões que o acompanharão por toda a vida.

Dias desses, ela veio me contar sorrindo o diálogo travado durante a última caminhada:

- Vó, por que você tem salário se não trabalha?

- Ah, mas a vovó já batalhou muito para sustentar sua mãe e sua dinda. É a minha recompensa.

- Vó, você batalhou quando? Foi na Segunda Guerra Mundial?

É claro que ela gargalhou muito e contou um pouco sobre sua vida, sobre seu trabalho e sobre a aposentadoria.

Mas, outro dia, de mala e cuia para dormir na casa da vovó, ele volta aos livros de história e pede:

- Vó, me conta uma história antes de dormir!

- Tomás, a vovó não conhece história nenhuma.

- Então, me conta aí alguma coisa que você viu na época da ditadura militar.

Assim caminham os dois entre palavras e sentimentos construindo laços, refazendo passados imaginários e dando importância ao que tem relevo na vida.