Domingo quase normal, não fosse pela ausência das crianças em uma agenda de compromissos de adulto: um casamento e um show. Foi, digamos assim, um dia de folga para eu e namorado, que nos permitimos ser apenas namorados. Mas também foi quase normal, porque aqui dentro algumas conexões do ouvido e da boca mexeram comigo, com sentimentos guardadinhos que resolveram desembarcar no final da noite em formato de gordas lágrimas. A saudade vem e volta por aqui. Tem dias que é normal, apenas fato, como é fato que trabalho das 9 às 18 horas. Tem dias que é dolorida, arde no meio do dia e faz um grande estrago em pedaços da minha noite.
Ontem não foi de estragos, nem de fato. Senti saudades de uma forma tão melancólica, que fiquei carregada dela, como um navio pronto para desembarcar em algum porto e fazer entrega de amor atrasado. O primeiro sinal apareceu assim. Meu namorado tentou lembrar o nome de alguém, na festa do casamento, e o nome não veio. Daí, eu me lembrei que meu pai, quando encontrava um conhecido e tinha uma falha na memória, usava como recurso chamar a pessoa de “professor ou professora”. Era um sinal de respeito, para ele, afinal o cargo tinha um grande valor. Contei a historinha, rimos juntos e seguimos festa adiante.
Na festa, tinha samba e tinha Paulinho da Viola, um dos favoritos do meu pai. O coração ficou quentinho e quietinho ao ouvir. Meu pai gostaria de ter ido a uma festa assim, com samba, sem formalidade, com risos fartos e com muito “se sinta à vontade”. Já em outra música, a banda convocou os convidados a dançar. Um senhor sentado na mesa ao lado disse: “Se for o Paulinho da Viola e se você me emprestar uma caixinha de fósforo, eu vou”. Meu pai também iria. Ele batucava uma caixinha como ninguém. Fechei os olhos e ouvi o som, o som da minha infância. A caixinha Fiat Lux roxinha tamborilando nos dedos escuros do meu pai. Na boca, um riso contido.
O samba continuou, eu bebi mais do que devia e fui resolver meus problemas de glicose com os doces da mesa. A noiva fez uma belíssima escolha de servir doces típicos. E eu escolhi os meus favoritos: doce de leite e figo cristalizado, este último da lista do meu pai. Na hora que mordi, o desejo de dividi-lo ao meio foi grande. Ofereci duas vezes ao namorado, que recusou. Eu queria mesmo era dividi-lo. Dar um pedacinho ao meu pai, que amava doces como eu. Na época do figo, eles enfeitavam nossa geladeira e com ele já doente, encomendávamos figada e quindim para adoçar seus dias.
Fomos embora para um soninho que cura tudo e partimos para o show de Maria Gadu, que encerraria nosso domingo sem filhos. Ouvi atenta a apresentação belíssima da cantora, encostada em ombro quente, quando ela cantou: “Se queres partir ir embora. Me olha da onde estiver. Que eu vou te mostrar que eu to pronta. Me colha madura do pé. (...)O apego não quer ir embora. Diaxo, ele tem que querer.”
Já tem dois anos e quatro meses que meu pai foi embora, mas o apego, não. Em cada canto, em cada lugar, imagino como seria se ele estivesse aqui. Para você que sabe do que estou falando, de um desejo secreto de inverter a ordem do mundo, divido a música de Gadú, Dona Cila, que mexeu comigo em uma noite de domingo molhada de lágrimas.
Amando a humanidade
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Acho que ser homem, pai, marido, adulto do sexo masculino já foi mais
fácil, mas não tinha graça. Confinados em seus clubes, escritórios, saunas,
bordéis,...
Há 9 anos