quinta-feira, 31 de março de 2011

Imprevisto



Está no dicionário o significado da palavra imprevisto. Com suas dez letras, ela anuncia o inesperado, mas é bem mais do que o que não se espera. Não é surpresa, mas sorrateiramente surpreende. O imprevisto não tem espaço na agenda, onde tomamos todas as horas com atividades milimetricamente compostas e cujo atraso em cinco minutos desfaz a coreografia dos nossos muitos movimentos diários.


Mas quando ele chega, não há como fugir, desmarcar, protelar, adiar. O imprevisto também é imperativo e se impõe como chuva forte ou revoada de pássaros. Não tem como impedir. Então, diante dele, temos alguns poucos caminhos a seguir. Reclamar da fatídica morte do sossego ou entender a nossa pequeneza existência. Chorar de desgosto ou assumir para si mesmo que é inconcebível viver como se pudesse sempre ser 100%. Alterar-se contra a vida ou contra quem te atropela ou adiantar um passo e ir mais além.

Tudo é tentativa para saber lidar com o imprevisto e ter certeza de que nada é certo na vida, nem mesmo o amanhã feito de um futuro milimetricamente imprevisível.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Primeira confissão

A novidade deste ano para o Tomás são as provas. Aos sete anos e cursando o segundo ano, ele agora tem uma agenda e nela estão marcadas as avaliações, como ele gosta de dizer. Já foram pelo menos cinco neste começo de ano e vamos dizer que ele está se saindo bem, apesar da pressa e da letra que ainda precisa melhorar.


Mas entre elas teve uma prova especial. O Tomás estuda em uma escola cristã e, portanto, estuda religião. E isso tem sido uma aventura para nós, porque em sua mente inquietante Deus é um grande mistério para o qual eu não tenho respostas. Para completar as dúvidas, o livro de religião foi o último a chegar e eles passaram quase três meses letivos estudando com fichas.

Na data da primeira prova, a professora escolheu que eles fizessem uma auto-avaliação. Eles tiveram que escolher entre muito bom, bom e ruim para itens como, organização pessoal, bom relacionamento, saber ouvir, cumprimento de regras, etc.

Na prova do meu pequeno, que quase tirou dez, ele marcou tudo “muito bom”, mas, depois em um exercício de “humildade”, apagou alguns x e passou para a coluna do “bom”. O exercício é evidente por causa da marca do x na folha, mesmo depois da borracha. Não marcou nenhum x para ruim, é claro...

E, no final, a pergunta para a qual ele não titubeou na resposta. “No que você precisa melhorar”. A primeira confissão do rapaz diz: “Preciso melhorar de levantar da carteira”. No que, a professora, em sua correção, concordou perfeitamente.

terça-feira, 15 de março de 2011

A teoria da esperteza


Diálogos insensatos são o que mais me divertem e me alimentam na relação com o Tomás. Sem querer, ele me coloca para pensar quando estamos longe ou quando seu corpinho adormece, enquanto eu continuo a zelar.


- Mãe, até que às vezes, os adultos são espertos.

- Você acha?

- Acho. Mas todas as vezes que eles são espertos é porque copiaram as crianças.

Segundo a teoria do Tomás, nós, seres autônomos, somos espertos quando inventamos uma desculpa para não ir ao trabalho como quando eles dissimulados pedem para não ir à aula, não nos importamos em nos molhar na chuva como eles, comemos um doce a mais depois do almoço como eles sempre gostam de fazer quando a vigia baixa a guarda, escorregamos a mão no pote de balas em noites sem culpas como eles tentam fazer todos os dias, deixamos a cama para arrumar depois como eles sempre pedem, mandamos avisar, no telefone, que estamos indisponíveis para cobranças e afins como eles fazem quando a gente liga para perguntar de uma tarefa ou obrigação ainda não cumprida ou  não comemos tudo que está no prato porque estamos de dieta e fugimos das comidas “tenebrosas” criadas por nós mesmos.

A teoria foi construída quando eu pedi ao meu namorado que ele e a filha enforquem a manhã de uma sexta-feira para ficarmos juntos. Eu, que estarei de folga, fui a esperta da vez porque criei uma boa desculpa para convencê-lo de meus argumentos e tornei possível um dia de branco ficar colorido.

- Eu nunca pensei, mãe, que você fosse capaz. Espertinha...

Vou concordar com o Tomás que, às vezes, para encarar o mundo adulto é preciso resgatar a criança que temos aqui dentro e ver algumas possibilidades que para olhares corrompidos pelo Capitão Gancho não são tão simples como deveriam ser.
Na próxima chuva, se jogue com tudo...

quarta-feira, 9 de março de 2011

Para o seu dicionário


"Para todas as coisas, dicionário. Para que fiquem prontas, paciência." (Marisa Monte)

Enquanto os filhos crescem, também se tornam mais crescentes os questionamentos, as dúvidas, os medos e os desafios a percorrer. Neste momento da vida de pai e de mãe, cada detalhe ganha o ar de espanto, de quem duvida ser daquele que até outro dia um pequeno ser, tanto ímpeto, tanto desejo, tanta vontade fora da sua.  Os filhos se formam na educação diária que damos a eles, mas também no mundo sedutor a sua volta, na conversa dos vizinhos, no recreio da escola, na propaganda da televisão, no anúncio da revista e no nosso olhar duvidoso.

Foi na sexta passada, véspera de festa planejada, enquanto nos arrumávamos para nos encontrar com os nossos, que Tomás decidiu ampliar seu vocabulário. A conversa começou com um simpático "Tem umas coisas da língua portuguesa que não entendo". Me preparei para explicar amenidades, quando ele me questionou os significados dos seguintes termos: "malandro, bad boy, mala sem alça, galã, projeto de galã e aquele que se acha".

Fui lá eu explicar cada um dos significados, enquanto ele me pedia exemplos e citava pessoas para cada uma das categorias citadas. "Fulano é malandro, então?". Depois de muitas definições sem exemplos. "E aquele se acha"? Foi quando terminamos o assunto: "Você, meu filho. Se acha bem maior do que é!".

Eu sigo nas tentativas de formar este dicionário onde impera a palavra amor.