Quando eu tinha 11 anos, inaugurei a fase em que brigamos muito com os pais. No meu caso, eu brigava muito com o meu pai, sempre calado, do contra, escondido atrás das barbas e das manias. Era uma criação de codornas, um pé de abacate, uma bicicleta antiga...
As brigas eram muitas até que um dia, meu padrinho, nosso eterno convidado para o almoço, me convidou para uma conversa particular no quarto dos fundos da nossa casa. Das coisas que estou me esquecendo agora, esta nunca irei me esquecer.
Meu padrinho me disse naquele dia as muitas tristes histórias da época em que ele e meu pai estiveram presos, dos sofrimentos físicos e psicológicos sofridos antes e depois da prisão, das saudades, dos sonhos perdidos, das torturas... Foi o primeiro passo para eu compreender quem era o meu pai e, daquela conversa, comecei a tortura de tentar ler e ver os filmes que falassem sobre a época, que me indicassem um pouco do que o silêncio do meu pai me roubou. Saber quem ele foi, o que fez, o que sofreu realmente sempre foi uma tarefa difícil.
Agora, parte das histórias que ele me contou, naquela tarde, está em um livro, organizado pelo Frei Betto. Os textos foram escritos na época da prisão, em papel de seda, enrolado e guardado dentro de uma caneta BIC, para que pudessem chegar no futuro sem que vozes abafadas os calassem. O lançamento em São Paulo é hoje, no SESC da Vila Mariana.
Diário de Fernando -Nos cárceres da ditadura militar brasileirapor Frei Betto Eis um documento histórico, inédito, que esperou 36 anos para vir a público: trata-se do diário de prisão do frade dominicano Fernando de Brito, prisioneiro da ditadura militar brasileira, ao longo dos quatro anos (1969-1973) em que foi submetido a torturas e removido para diferentes cadeias. Fernando, em companhia de outros frades dominicanos, vivenciou algo inusitado em se tratando de presos políticos do Brasil: foi obrigado a conviver, durante quase dois anos, com presos comuns, em penitenciárias de São Paulo. Assim como o “Diário de Anne Frank” nos revela a natureza cruel do nazismo, Diário de Fernando retrata o verdadeiro caráter do regime militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Não se conhece similar entre as obras publicadas sobre o período.
Em papel de seda, em letras microscópicas, e sob risco de punição, Fernando anotava, dia a dia, o que via e vivia. Em seguida, desmontava uma caneta Bic opaca, cortava ao meio o canudinho da carga, ajustava ali o diário minuciosamente enrolado e remontava-a. No dia de visita, trocava a caneta portadora do diário com outra idêntica, levada por um dos frades do convento.O medo de ser flagrado pelos carcereiros e o risco permanente de revistas, fizeram com que Fernando muitas vezes se visse obrigado a destruir as memórias registradas em papel. No entanto, o que vivenciou jamais se esvaneceu, e ultrapassou os muros das prisões. Frei Betto, seu companheiro de cárcere, resgatou as anotações, deu-lhes tratamento literário e as reuniu neste livro que se constitui num documento de inestimável valor histórico.Nos episódios relatados, a trajetória dos frades se mescla à de personagens que são, hoje, figura de destaque na história brasileira, como Carlos Marighella, Carlos Lamarca, Caio Prado Jr., Apolônio de Carvalho, Paulo Vannuchi, Franklin Martins e Dilma Rousseff, para citar apenas alguns.
Para quem se interessa em conhecer a verdadeira face do regime militar e o Brasil dos “anos de chumbo”, Diário de Fernando é um testemunho vivo, comovente, de uma de suas vítimas. Não se trata de investigação jornalística, nem resulta da pesquisa de historiador, mas sim de um sincero, emocionante e visceral relato de quem teve a ousadia de registrar, dia a dia, as entranhas de um dos períodos mais dramáticos da história do Brasil.Está tudo ali: as torturas, os desaparecimentos, o sequestro de diplomatas, as guerrilhas urbana e rural, a greve de fome de quase 40 dias, e também a convivência dos prisioneiros marcada por momentos de inusitada beleza: as festas de Natal, as noites de cantoria, a solidariedade inquebrantável entre eles.
Diário de Fernando traduz a saga de uma geração que não se dobrou à ditadura e a qual o Brasil deve, hoje, a sua redemocratização. Eis uma obra que enaltece a dignidade humana, a capacidade de resistência frente à opressão e a vivencia da fé cristã como nas antigas catacumbas do Império Romano.
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