segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Mimo do céu

Quando encontro uma flor cor de rosa sem moda que sai brotando pelas paredes e sobe nos muros até alcançar o céu, ganho passagem gratuita para a casa dos meus avós, onde passei as melhores férias da minha infância e onde guardei meus melhores sonhos. Foi assim no começo desta semana de sol, virando uma esquina, me deparei com um pé de Mimo do Céu, fazendo sombra e cor em uma rua qualquer.


Olhando aquelas flores, salientes e agrupadas, voltei a ter seis anos, os pés no chão e um medo famigerado da bengala de Dona Ana, minha avó. O casarão, com quatro enormes quartos sem forro, com janelas de madeira e um grande pátio é o lugar onde descansa a minha memória de pequena, de quem pulava a janela da cozinha para ir direto à ladeira que seguia até o rio Tocantins.

Descia descalça, apesar da dor causada pelas pedras, apenas para não ter nada a carregar depois. Apenas grande, peguei mania de sempre estar de mãos e cabeça ocupada. Neste tempo, apenas descia para encontrar a água serena do rio, onde mergulhava e encontrava a paz de dias que nunca passavam.

Passava o dia ali construindo castelos de areia molhada e pulando da pedra mais baixa, porque me carecia idade para escolher a mais alta. Quando o dia era diferente, pegávamos uma “voadeira”, o vento na cara e o destino certo, uma ilha de areia branca e barraquinhas de palha, onde ficávamos até o sol ameaçar sumir, nadando em água rasa e brincando de conquistar novos horizontes, tão possíveis ali.

Na volta para casa, a ladeira acima sem os chinelos era sempre dolorida e reclamada, centímetro por centímetro. Pensava em construir ali uma escada rolante ou guindaste para carregar o meu corpo cansado de tanta água e tanto sol. Mas eu tinha que vencê-la dia a dia se quisesse descer e eu vencia.

Então chegava lá, no topo, onde a janela da cozinha me esperava, se minha avó não estivesse por lá. Se estivesse, ganhava um jarro de água nos pés sujos e a ordem de entrar pela frente, como gente e não como gato que se arrisca em janelas.

Mais uns degraus e lá estava em casa. Era hora de correr para o chuveiro e vestir roupa decente, porque de biquini ninguém se sentava à mesa. E se sentar à mesa era honra querida e valia o sacrifício de enxaguar o corpo na água fria do tanque ou no chuveiro embaixo da caixa d’água, cuja força da água levava qualquer grão de areia.

Eu sempre preferi o tanque, onde o Mimo do Ceú fazia sombra para os banhos mais demorados e de onde era possível conferir a conversa que vinha do pátio e eram sempre boas conversas, regadas a muitas risadas e lembranças.

Terminado o banho, ia eu arrumar lugar para dividir a fartura daquela mesa, posta com o que tinha de melhor na casa. O fogão à lenha, os potes de barro para esfriar a água, as panelas areadas como prata, os pratos de esmalte, a galinha ao molho recém-falecida eram coadjuvantes das mãos firmes de minha avó.

As mesmas mãos que davam o tom à voz de bronca aos netos que se pareciam com gralhas, que temperavam a comida mais gostosa, que secavam os seus olhos na hora da partida e que cultivavam toda a beleza de um mimo que só se vê no céu me fazem falta agora, quando careço de coragem para subir ladeira.

Que a memória destas mãos venha ao meu socorro quando eu não souber o caminho a seguir. Saudades...

4 comentários:

  1. Querida, charmosa Luisa um mimo mesmo ficou o seu texto. Redundância ou ao quadrado? Dois mimos a leve trepadeira de cor rosa que também tinha na tela do quintal da casa de vovó Aurora lá em São Luis de Montes Belos e outro é o seu texto, sua escrita poética carregada de nostalgia boa e calorosa de afetos.
    Obrigado por esse mimo em final de tarde de terça-feira nesse janeiro carregado de saudades de tanta gente que já não estão mais por perto...
    beijos

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  2. lú,
    vc, como sempre, me faz viajar no tempo!!!
    posso sentir o cheiro, imaginar o local!!
    vc descreve com riqueza de detalhes.... muito bom!!!
    bjks

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  3. Ai que saudade desse casarão! Lindo texto, Luisa!
    Beijos

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  4. Amor, lindo seu texto.
    Com a mesma maestria que tece sua cuidadosa arte, tece palavras belas que promovem remendos em corações esburacados pela nostalgia.
    Eu, quando sinto o cheiro de "Dama da Noite" lembro da minha infância no Privê Atlântico.
    O cheiro de café me faz lembrar dos pátios das fazendas de Barretos, cobertas do fruto secando.
    Cheirinho de baunilha, um novo significado.

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