sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Árvore genealógica


A cena era passeio do dia das crianças, que começou cedo lá em casa. No banco de trás do carro, meu filho e mais duas crianças: o Pedro e a Maria Eduarda, ambos com seis anos. O programa era tomar café-da-manhã juntos e aproveitar os novos brinquedos. Mas com miniaturas de gente não dá para fazer previsões. E também não dá para ficar em silêncio. A primeira pergunta veio logo:

Tomás - Mãe, o que eu sou do Pedro?

Parênteses. O Pedro é filho do meu cunhado e enteado da minha irmã. Não sou genealogista. Vou pelo bom senso que é o que me resta neste mundo com poucas regras.

Eu - Primo. Ele é filho do seu tio, então é seu primo.

Tomás - E da Maria Eduarda? Também sou primo?

Segundo parênteses. A Maria Eduarda é prima do Pedro, sobrinha do meu cunhado. Neste momento, eu tentei responder, mas as vozes começaram a se atropelar e o diálogo a seguir ficou bem mais entrecortado.

Eu - Ela é nossa amiga, filho. Prima de coração.

Neste momento, devia ser igual aos filmes e todo mundo ficar em silêncio, com uma música de fundo e o tempo passando do lado de fora. Mas não foi o que aconteceu.

Tomás - Tá, mais e a vovó? Também é vó dela? Ela deu presente para a Duda, sabia?

Meus pequenos companheiros daquele dia têm muitas coisas em comum e também dúvidas e anseios sobre a eternidade dos laços com quem ama. Ambos não moram com o pai e com a mãe juntos e dividem suas agendas mirins em visitas ao pai, à mãe ou à avó. Em algum momento, todos já tiveram madrastas ou padrastos. Quando começam a falar, tentam dar nomes, funções, regras ao que não têm regra. Enquanto tentavam ter certeza se eram primos, se havia um laço que os tornasse para sempre amigos e cuja sombra da separação não ameaçasse, dialogavam aflições e expunham a complexa realidade das famílias do dia de hoje.

O pequeno Pedro, meu recém-sobrinho, mora com a mãe e o padrasto, que chama de pai de criação. A Maria Eduarda mora com a avó e o pai, na mesma rua que a bisavó, no mesmo bairro que a mãe. O Tomás mora comigo.

Pedro - Luisa, eu tenho dois pais, um de sangue e outro de criação. Mas um dia eu vou morar com o meu pai, sabe?

Eu - Sei, Pedro. O papai também te cria, né? Ele ajuda, está presente e quer muito ter você sempre por perto, né?

Pedro - É, eu quero morar com ele um dia.

Tomás - Eu não quero não!

Eu - Às vezes, quando a gente é pequeno, é melhor estar perto da mãe da gente. Mas isso não quer dizer que a gente não possa ficar com o pai, né? Vocês têm pais que gostam de vocês, mas é que as mães são muito importantes. (Tentando desfazer um nó imaginário de abandono ou qualquer coisa semelhante e fazendo outro nó maior ainda).

Maria Eduarda - Só eu que não moro com minha mãe. Eu também queria morar com ela. Tipo assim: às vezes, ela podia cuidar de mim. (Atou as pontas a falante Maria, para quem eu não teria nenhuma resposta).

Eu - Mas você vê sua mãe a hora que quer, né, Maria? E tem várias pessoas que te amam muito?

Finalmente, chegamos. Coloquei os três para carregar sacolas e tudo mais que tinha no carro, para que se ocupassem reclamando do peso, enquanto meu coração aos pedaços e com bem mais do que os 20 quilos de cada um, pesasse o dia todo.

Me explica se um pobre genealogista poderá explicar aos herdeiros de Maria Eduarda e Pedro em 2100 que, na árvore deles, existiam algumas pessoas cujos nomes estavam além dos laços sanguíneos e das explicações plausíveis sobre o que significa ser família no começo deste século.

4 comentários:

  1. um desafio e tanto, minha amiga. tão grande quanto o nosso de fazer e desfazer nós...

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  2. Adoro esses papos... e me divirto com a aflição de vocês... O que será que aconteceria se vocês respondessem sem tentar adivinhar enigmas embutidos nas perguntas?

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  3. Nossa Luisa, meus olhos se encheram de lágrimas ao final do seu texto. Eu também venho de uma família toda torta, mas reta demais no amor, e entendo a aflição dessas crianças. Infelizmente, nessa idade ainda é necessário entender algumas coisas com o raciocínio mais lógico, tentando pegar atalhos e pontes que as levem a um lugar comum.
    O que me deixa tranquila é que daqui uns anos eles só terão a certeza de que as pessoas que estão a sua volta os amam, independente de terem seus postos bem definidos na árvore genealógica.
    Parabéns pela sensibilidade do texto!

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  4. Luisa...que que isso?
    embasbascado estou com seu texto. Especialíssimo. Devia ir para um livro didático.Mas eu vou embora e outra hora volto para comentar mais. Vc me deixou passado de poesia.
    beijos

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