quinta-feira, 28 de maio de 2009

Leite Derramado


Terminei “Leite Derramado”, do meu favorito Chico Buarque. Sofri e me diverti com a decadência e o olhar confuso do centenário Eulálio Assumpção, ao relatar a saga da sua família tendo como pano de fundo a política brasileira e as próprias viradas que a estrutura familiar brasileira passou, os lares desfeitos, os avós criando os netos, a gravidez na adolescência. No início, o livro me seduziu pela narrativa não linear, pela vida movimentada de Eulálio e os comentários arrogantes sobre os personagens que participavam da sua história. Em seguida, fui “pega” por um outro lado do romance. É que Eulálio conta o auge e os momentos finais da sua família, supostamente, de uma cama de hospital. Ele narra suas memórias para a enfermeira, para a filha, para o leitor. Mas, de fato, não sabemos se alguém as escuta. Não dá para saber, ao certo, se Eulálio fala, se os fatos realmente ocorrem.
Foi quando percebi que Eulálio estava acamado, não se sabe por quanto tempo, como meu pai ficou por cinco anos. E que, apesar da sua doença, ele vive intensamente o seu passado, confundindo as datas e as pessoas, se apaixonando e romanceando amores que não existiram. Isso me tocou muito, porque sempre tive dúvidas se meu pai, durante o seu silêncio, pensava, sentia, sonhava... Quando ainda não estava na cama, meu pai já vivia amores como Eulálio com a caixa da farmácia, a vendedora de sorvetes... Trocava nomes, se esquecia de quem já tinha partido, fazia planos com lugares onde não iríamos mais. Fiquei pensando se isso continuou depois, se durante a sua ausência ele ficou presente em outro lugar, vivendo uma vida que beirasse as lembranças e os delírios, como o que faz Chico Buarque em sua narrativa de forma tão realista, com os mesmos tropeços que a velhice ou uma doença provoca em algumas pessoas. Em alguns momentos do livro, era como se eu pudesse ler os pensamentos do meu pai.

Um comentário:

  1. é incrível como alguns textos nos fazem refletir tto sobre ttas coisas nossas. fazem a ponte, mesmo...

    qdo eu ia na sua casa, nos tempos do silêncio, ficava toda sem jeito sem saber se eu devia manifestar afeto. sem saber o q fazer, costumava passar as mãos nos ombros de Gaúcho. e no segundo seguinte me perguntava que sentido teria aquele gesto. a verdade é q nunca saberemos, ao certo. mas acho q no silêncio se constroi, tb, mta cumplicidade. e se consolida tb.

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