sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Eu quero a verdade


Acho que tem dez anos que sou usuária da internet. De lá para cá não foram poucas vezes em que digitei no Google os nomes dos meus pais. Os resultados não são muitos, mas dão pequenos indícios da história da minha família, dos anos que nos foram roubados, do que perdi, do lugar que eu nasci e do muito que eles sonharam por mim. Nos livros e nos filmes, uma ou outra imagem constrói outro pedaço, falam de amigos ou deles mesmos, falam de pessoas anônimas, que não sei quem são. Uma conversa em voz baixa entre minha mãe e um tio querido revela outro trecho já quase esquecido. E minha imaginação, durante muitos anos, construiu o resto da história, que é como um quebra-cabeça cujas partes não se emendam. Só que neste caso o buraco causa mais do que o transtorno de um jogo inacabado. É um buraco de verdades que nunca são encontradas.


Explico: meus pais foram exilados políticos, se conheceram longe de casa e viveram por anos fora do Brasil e ao voltarem para cá silenciaram suas dores e guardaram suas memórias para se sentirem seguros. Eu nasci neste período, em Bruxelas, e, por isso, ganhei na certidão o nome de um país que não me pertence, não conheci meu avô paterno, perdi meu pai para o sofrimento, tive medo de dizer a verdade sobre o que meus pais poderiam ser, tive muitos pesadelos pelo que eles viveram e não sei se o tamanho da minha gratidão por eles é suficiente.

Durante o processo para indenização na Comissão de Anistia, no começo da última década, meu pai já tinha perdido a força e a memória, e eu e minha mãe precisamos recontar a sua história. Consultei vários documentos virtuais ou não em busca de uma só coisa: a verdade. A verdade que não estava no meu livro, na sétima série. Muitas partes ficaram faltando, outras foram recontadas por poucos amigos ainda vivos ou foram lembradas pela minha mãe. Mas eu não tenho em mãos a acusação que o condenou à prisão, não sei o que ele passou na prisão, não sei o nome de quem o fez sofrer. Só o que consta, oficialmente, é que em 1971, ele foi exilado junto a outros 69 prisioneiros, que ganharam o direito só de ida para o Chile. No ano seguinte, minha mãe também deixou o Brasil, em um vôo solo, rumo a uma pretensa liberdade que não a alcançou no país chileno às vésperas de um golpe militar.



Agora uma nova lei pode me fornecer as peças que faltam ao quebra-cabeça da minha história. Foi publicado ontem, no Diário Oficial da União, o novo decreto que estabelece o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos e a polêmica Comissão da Verdade, que desagradou à área militar do governo Lula em sua primeira publicação, em dezembro, atende a uma demanda antiga deste País: de saber o que aconteceu, quem praticou e onde. O texto, já modificado para atender a cúpula de generais, fala em “identificar e tornar públicas as estruturas utilizadas para a prática de violações de Direitos Humanos, suas ramificações nos diversos aparelhos do Estado e em outras instâncias da sociedade”. Anteriormente, o mesmo texto falava em “violações de Direitos Humanos, no contexto da repressão política”, ou seja, os atingiam diretamente e, com a mudança, atinge a todos os grupos que usaram de violência. O fato é que uns usaram violência para reprimir e outros usaram para libertar. Há, nestes dois lados, uma grande diferença: a legitimidade.


A Comissão da Verdade foi criada para apurar os excessos praticados no período e tornar públicos os casos de tortura, estupro e assassinato em prol da ditadura e também promoverá a revogação de todas as leis que violam direitos humanos, feitas de 1964 até 1985. Em tese, isso inclui a Lei de Anistia, de 1979, que garantiu o retorno de tantos brasileiros exilados ao País, mas que mal interpretada, permitiu que torturadores e assassinos não fossem julgados. A anistia instituída naquela lei era só para as vítimas, mas foi usada sabiamente também pelos algozes. Com esta ou com uma nova lei, cabe aos governantes cumprirem a vocação democrática do Brasil.

Muitas pessoas acham que tal discussão não cabe mais, que os anos passados já se foram, que isso macula a imagem do exército brasileiro, mas não percebem que o País não pode ficar com esta conta aberta e que isso mancha a nossa democracia. Alguns grupos se acovardam e temem ver os seus nomes expostos nos arquivos que serão abertos e reconstruirão os fatos a partir de 1964, sem considerar apenas os nomes dos ditadores que ocuparam o principal posto do País, mas também daqueles que foram coniventes e executaram suas ordens. Se não haverá um julgamento pela justiça comum, a gente precisa pelo menos fazer um julgamento moral destas pessoas e isso não interfere no papel que o exército brasileiro desempenha hoje. Países como Chile e Argentina á escancaram os anos obscuros de sua história e no Brasil, não pode ser diferente. Há de se compreender que ao não julgar os fatos ocorridos durante a ditadura militar, fragilizamos a nossa democracia.

A pressão política continuará para que o decreto não vire lei. Em uma carta ao presidente Lula, o arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns e outras importantes personalidades na luta pelos direitos humanos, escreveram: "Não pode ser chamada de revanchista uma proposta que se limita a jogar luz sobre as violências praticadas nos porões da repressão política", afirmam. "Os povos que se recusam a aprender com seus próprios erros estão condenados a repeti-los. É do futuro que estamos falando." E é, neste futuro, que eu quero que meu filho saiba o que aconteceu e como aconteceu no seu livro de história, da sétima série. Eu não quero revanche. Eu quero a verdade.



* Foto dos setenta presos liberados após o seqüestro do embaixador suíço, Giovanni Burcher, em 13 de janeiro de 1971, no vôo rumo ao Chile


*Foto da escultura Truth and Falsehood


Alfred Stevens (1817-1876)/ Victoria & Albert Museum, London

3 comentários:

  1. Que lhe seja dado, e também a centenas de outras famílias, e também a toda a nação brasileira o direito de saber a verdade. Pelo menos a histórica. E que ela esteja nos livros da sétima série.

    A verdade pessoal, essa cabe a nós buscarmos. E não tenho dúvida de que você o faz.

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  2. Luisa,a história da sua família é muito bonita. E pra vc saber a verdade tem algo ainda de mais importante. Mas é fundamental, como vc disse, pra todos nós. E é absurdo que ainda seja assim, às escuras, né? Tomara que a gente consiga ter acesso a todas as verdades...Bj!

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  3. Todo o dito, o escrito, o fotografado, o filmado, o fantasiado... não é suficiente para termos, enquanto povo, uma percepção profunda dos horrores da ditadura. Com esse texto, ao conselho do outrora, agrego um pedido: conte essa história vocês mesma! Tenho muito interesse de conhecer o seu ponto de vista e os detalhes mencionados mas não descritos... Obrigado pelo que já adiantou. A propósito do "carnaval" em torno da lei, resta nos indignar pela reincidente tergiversação das questões fundamentais, infeliz e frequentemente com patrocínio dos media.

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