segunda-feira, 8 de março de 2010

Mulheres de verdade








“Trazemos no corpo

o mel do suor,

trazemos nos olhos

a dança da vida,

a morte vencida”.



D. Pedro Casadáliga e Pedro Tierra



Minha avó devia ter uns 25 anos quando saiu de Rio Grande, no Piauí em direção à Goiás, a pé, como eram feitas estas viagens no começo do século passado. O primeiro filho não contava mais de 1 ano e seguia carregado no lombo de um jumento, guiado pelos homens fortes que a acompanhavam. O segundo filho lhe ocupava o ventre sem pesar, posto que o que lhe pesava era o coração cheio de dúvidas.

Para trás, ficavam a seca, o conhecido, a miséria, a família, as tragédias... Seguiam com ela e a tropa pequena de viajantes a fé, os sonhos, a nova família, a coragem, o desconhecido. Em Goiás, depois de mês de viagem, chegaram a cidade de Porto Nacional, onde fizeram morada. Dali em diante, ela saiu do posto de filha para se tornar uma matriarca cuja delicadeza nunca escondeu a força, cuja coragem nunca deu sombra para o medo.

Minha avó teve sete filhos nascidos “da barriga” e mais uma filha semeada em seu coração. Dos sete primeiros, minha mãe foi a única mulher e a divisora de águas. A filha número cinco, que nasceu nesta ordem, por obra de destino, sempre teve o papel de ser o elo entre a primeira parte dos filhos e a segunda parte. Papel que lhe cabe até hoje.

Para colocar todos no mundo, minha avó gastou exatos 20 anos. Foram duas décadas para criar a família, o seu sobrenome e a sua história. Fincada em uma rua histórica da cidade, em uma casa de esquina, minha avó se amparava no peitoril da janela para observar, enquanto uns filhos chegavam, outros iam.

Por decisão do meu avô, que não freqüentou escola, mas via nas letras mais do que uma assinatura, todos os filhos estudaram, incluindo as mulheres. E, assim que concluíam os estudos, alçavam vôos mais altos, contemplados e guiados pelas orações de D. Ana, que entre um e outro suspiro, lhe garantiam que nada de mau lhes aconteceria antes do tempo.

Agarrada em seu terço, ela viu os filhos maiores mudarem de cidade e criarem suas próprias famílias, o filho predileto escolher como vocação a fé e os filhos menores se embaralharem na confusão política instalada no País. Sofreu ouvindo no rádio as notícias de uma repressão que aniquilava famílias, sofreu com os mexericos em uma cidade que tinha apenas oito presos políticos e destes, três eram seus filhos, sofreu quando dois dos seus foram para longe, bem mais longe do que o Piauí lhe parecia. Mas resistiu.

Resistiu para, na hora certa, dizer aos seus filhos palavras de consolo, para dizer do seu orgulho com o olhar sem desânimo, para esperá-los sem cessar, sem descrençar, sem desiludir. Não sei se, neste tempo, é possível contar quantos terços rezou, quantas velas ascendeu, quantas manhãs perdeu olhando para o fim da rua à espera de ver seus filhos regressarem.

Envelheceu, é certo. Mas resistiu também. Tinha o corpo magro, os cabelos prateados e o olhar entristecido nas fotos do dia que eles retornaram, já casados e com filhos. Eu era uma pequena garota de 3 anos, encantada com um quintal florido, um tanque que transbordava água (o que não existe na Europa) e uma avó que matava galinhas torcendo seus pescoços. Mas aquela avó ainda tinha o punho forte, a voz severa e a fé inabalável. Fez a família sentar em volta da mesa, onde não se sentava sem camisa ou com roupa de banho. Fez a oração costumeira de agradecimento. Serviu um banquete, organizado com os detalhes que não esquecia e para os filhos e o genro, botou a comida no prato. Deixou a porta fechada e lá fora, todos os que não acreditaram.

Naquela casa, tinha uma família e naquela família, tinha uma mulher que não desistia nunca e cuja memória para datas e nomes me foi doada gentilmente e cujas mãos de dedos longos, que dariam uma ótima pianista, fizeram dela uma rendeira impecável, dessas que tecem trama incontestável, a trama da vida.

A todas as mulheres que tecem suas histórias com amor e coragem, que haja mais do que um dia para se comemorar vitórias, que haja tempo para que elas sejam lembradas...

8 comentários:

  1. que lindo Lú!
    fiquei arrepiada! sua avó, assim como a minha, como minha mãe e outras mais velhas que nós, essas sim são guerreiras de verdade!
    porque as fraldas eram de pano, o desfralde não tinha ajuda pedagócica da creche, não existiam potinhos de papinhas industrializadas e seus maridos não eram como alguns maridos de hoje, que ajudam e cooperam em casa!
    lindo!
    feliz dia pra vc tbm!!
    bjk

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  2. Não é à toa que eu gosto de você. Com uma história de vida dessas atrás de ti, você não poderia ser outra pessoa a não ser Luisa.
    Que sejam felizes todos os dias da sua vida.

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  3. A força e determinação estão entremeados no seu DNA familiar.

    Rogério Gonçalves

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  4. Oi Luisa!

    Muito linda sua homenagem às Mulheres através das suas doces lembranças de Don'Ana... Tive o prazer de ouvir as histórias de força e determinação desta Matriarca... Beijos carinhosos em você, Dagui, Mari, Mazé, Cristina, Liliana, Ana Terra, Maria,...

    Vera/Rio

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  5. ...Ana Maria, Ana Cristina, ... Depois de vinte e tantos anos, só agora caiu a ficha do pq de tanta Ana nesta família...

    Bj,

    Vera

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  6. Linda homenagem!!
    Viva as mulheres!
    bjks

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  7. Nossa, Lu...Que coisa linda! A sua história e a forma como vc conta. Beijo!

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  8. Coisa mais linda ! É tão bom ter histórias para contar, sobretudo quando são verdadeiras... e fazem parte de nossas vidas. Lindo !

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