quinta-feira, 18 de março de 2010

Roteiro

Depois de um certo tempo usando o mesmo corpo, a gente se acostuma, a gente aprende, a gente formula. Se hoje tivesse que entregá-lo a outra moradora, caso fosse requisitada para outra tarefa, eu escreveria de bom grado um roteiro para a nova habitante cuidar destes ossos e músculos que comigo seguem. Assim evitaria para eles o sofrimento mútuo, o estranhamento desnecessário e perguntas que não precisam mais ser feitas.


Pediria apenas que a nova moradora se comprometesse a cuidar dele com o carinho necessário, que fosse com ele tolerante, que não lhe olhasse só os defeitos, que o contemplasse com respeito. E eu partiria feliz para uma nova jornada.

E se ela tivesse algum arroubo ou mudasse o tom de voz no meio da conversa, seria até perdoada, já que este vício é meu há algum tempo. Mas teria que ser fiel a pequenos hábitos, a um uso descontrolado de reticências e a perder o olhar na multidão.

Caso quisesse fazer uma melhora, indicaria que ensinasse a minha voz a dizer “desculpas” sem tantos calafrios.

xxxxxx

Para acordar, frestas da cortina sem reforma.

Para o melhor café, panquecas, receita guardada na memória.

Para ser, batom e rímel.

Para sair, pressa, muita pressa.

Para garantir, duas voltas na chave.

Para chegar, uma volta a mais na quadra.

Para entender, sorria, sempre. Sorria.

Para cumprir, prazo.

Para a sede, água.

Para o sono, café.

Para a fome, imaginação.

Para sofrer, ouça Aimeé Mann cantando Save me.

Para aliviar, escreva com o coração.

Para escrever, pedaço de folha dentro da bolsa e caneta emprestada na gaveta ao lado.

Para aplacar ansiedade irrevogável no seu coração, comida de mãe.

Para curar, um prato de brigadeiro e uma colher.

Para dormir, três travesseiros.

Para insônia, remédio não descoberto.

Para tristeza noturna, observar o sono profundo de quem se ama.

Para dançar sozinha, 10.000 Maniacs.

Para dançar acompanhada, Zizi Possi, último cd da pilha.

Para comemorar intimamente, brinde.

Para dias nublados, não se use.

Para recordar, “Haja o que houver”.

Para encantar, Érico Veríssimo em “Olhai os lírios do campo”.

Para entender, Clarice Lispector, em A paixão segundo G.H.

Para conhecer raízes, Mário Quintana, em As mãos de meu pai.

Para se reconhecer, Chico Buarque.

Para sorrir, fotos da cabeceira.

Para chorar, caixa guardada no maleiro, atrás das malas.

Para se proteger, manter a caixa nesta mesma altura e a escada e a coragem a uma distância seguras.

Para explodir, chuveiro.

Para negociar, paciência.

Para acalmar, telefone, tecla dois da emergência.

Para merecer, escute o silêncio recolhido no quarto.

Para temer, ratos, animais peçonhentos e covardes.

Para encorajar, veneno na última prateleira da despensa e uma boa dose de ironia.

Para joelhadas, esbarrões, torcicolo e traições, palavrão.

Para gripes, cólicas e afins, chá feito por qualquer pessoa que não você mesma.

Para emocionar-se, Girassóis da Rússia.

Para dividir, sofá.

Para rever, Casablanca.

Para se divertir, amigos.

Para trocar confidências, irmãs.

Para se enamorar, tempo.

Para tardes ensolaradas consigo mesma, sorvete de iogurte de damasco.

Para adoecer, entregue se a solidão.

Para mudar, marque um horário longo no salão.

Para emagrecer, romance.

Para emagrecer sem dupla, ligue para pessoa com a letra w da agenda e marque horário.

Para se sentir viva, regue as plantas.

Para se sentir mais viva, alimente o hamster, o único animal que lhe coube nesta vida.

Para se sentir viva sem sombra de dúvidas, beijo na boca.

Para retornar, tire os sapatos.

Para não se perder, organize.

Para se organizar, faça listas.

Para se perder, feche os olhos e rasgue as listas.

Para melhorar, reze.

Para acontecer, encomende orações.

Para encomendar orações, fale com as primeiras pessoas das letras l e m, da agenda escrita.

Para se alegrar, ouça as risadas de um pequeno homem.

Para reconhecer o pequeno homem, veja seu reflexo no espelho.

Para se preocupar, ouça os problemas dele.

Para simplificar, não responda sempre.

Para encurtar, estacione de frente.

Para garantir, diga sim.

Para amar, noites com ou sem tempestade.

* Música do post (copiando Patrícia):

3 comentários:

  1. Genial. O tempo só nos faz bem, querida...

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  2. Luisa,

    Parabéns pelo seu aniversário!!! Felicidades...

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  3. Meninas, obrigada... Vcs são o item imprescindível, listado como "irmãs". Grande beijo!

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