quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Amor perfeito


Minha tia chegou junto com o sol na quarta-feira acelerada, em um novembro que se esquece de ser penúltimo e mais parece o último mês do calendário. Junto com ela, como em todas as suas visitas, uma lata de amor perfeito. O biscoito que derrete na boca é receita típica de Natividade (To), mas é encomendado em Porto Nacional mesmo, terra de onde ela vem.
A mistura doce e, como diz o nome, perfeita em sua composição de leite de coco e polvilho me aninha o coração desde a infância. Porque nela está registrada a patente do amor mais que perfeito, silencioso, absoluto, desmedido em misericórdia, solidário, companheiro e infinito. Amores assim são incondicionais e nos carregam por toda a vida.
É em sua suave maciez e sabor inesquecível que encontro o colo quente dos meus primeiros anos de vida, a risada de quem surrupiava nas latas só mais um biscoito, a certeza de que dias felizes não se esgotam tão fácil e a esperança de nunca estar só.
Minha tia chegou e com ela veio o amor perfeito. Meu coração adoecido dos medos do escuro e da solidão sentiu em seu afago a certeza de que sempre há mais um bocado de tudo para se chegar ao fim e que para todo mal há receita certa e cura provável.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Outubro



Há em outubro esta magia do recomeço: a esperança de que antes do ano findar haja tempo e amor para tudo. Está em outubro o pré-balanço do final dos meses, um novo fôlego, uma pequena mudança, a confirmação do caminho, o olhar para os lados, a revisão dos pedidos, uma nova cor para os esforços.
Faltam três meses para que mais um ano acabe, talvez o mundo. São 91 dias. É suficiente? Faltará dia? O que dará certo? O que foi previsto? O que surpreendeu? O mundo gira em círculos e você e eu?
É sempre em outubro, com o papai Noel batendo na porta, um candidato que te pede votos, dois feriados e 31 longos dias de Primavera, que a gente se pergunta para onde mesmo segue a barca.
Lá fora a seca do Cerrado fez estragos, mas as flores insistem em brotar. O ipê já floriu e, logo, a flor de outubro brota do seu cacto. Impagável milagre da natureza que nos deixa assim a pensar, que dá para remediar ausências, dedicação e boa vontade. Que, no fundo, tudo pode dar certo.
Então que venha outubro com inspiração do poeta Nei Duclós, trazer rompimento e nascimento na medida certa:
"Trago a nova: eu mudo lento, e é tudo. Sinto ser assim por estações: aos turnos. Posso voltar ao ponto de partida, mas luto. Sei que vem outubro. Flores, frutos de seiva romperão no mundo (Trabalho duro: sugar de pedras, rasgar os caules, colher ar puro) Lento e bruto eu mudo/ Sei que vem outubro”.
 

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Para vários nós em pingos d’água


Aos 8 anos, é normal ter várias ideias para burlar as regras e Tomás não foge a essa regra. Ainda bem que as sugestões dele sempre estão no discurso e nunca estiveram “no pular o muro”, como na minha infância.
Diante das negativas, ele sempre tem um argumento contrário, um senão, um porém, um desacordo que o torna um bravateiro de marca maior.
Na partilha, alguns diálogos que sempre me deixam a pensar e pensar:

- Mãe, quando eu for pai, eu não vou ficar ouvindo você toda hora para tomar as decisões sobre a educação dos meus filhos.
- É mesmo?
- É. E eu acho que você não devia ficar ouvindo minha avó sobre assuntos de internet. Ela não entende nada do assunto.

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Depois de uma briga na escola, sigo a orientação de praxe:
- Filho, estou decepcionada com o que você fez. Não podemos bater nos amigos jamais.
- Mãe, mas quem disse que ele é meu amigo? Ele é meu colega.
- Tá certo. Não podemos bater nos amigos, nos colegas, nos desconhecidos, em ninguém.
- Ampliação total? Ou vai deixar os bandidos de fora?

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- Mãe, me deixa dormir na sua cama...
- Filho, você está tão crescido.
- Mas é que eu posso ter um pesadelo e quando estou do seu lado, me sinto o mais protegido dos meninos.
- Filho, você nunca está sozinho e Papai do Ceú está sempre de olho em você.
- Sabe o que é, mãe? Você só tem que me olhar e Deus tem que olhar todo mundo e ainda anotar as besteiras que os grandes fazem. É muita coisa para Ele.
- É muita coisa, mas Ele dá conta.
- Mas tadinho, mãe. É melhor você mesma me olhar hoje à noite e dar uma folga para Deus.




quarta-feira, 27 de junho de 2012

Os olhares que salvam

Alex Ramos da Silva cruzou o olhar com o de muita gente, na última semana, nas edições nacionais dos jornais. Ele foi responsável pela proeza de encontrar a menina Brenda, 4 anos, depois de duas semanas desaparecida. Coincidência não prevista no destino, ele, que era vizinho da família dela, a viu na rua com um andarilho. Cruzaram o olhar e, de repente, ela foi salva.




Sim. Foi o olhar de Alex que a salvou, antes mesmo que as mãos dele pudessem-na resgatar. Porque o olhar do outro sempre pode nos salvar. Está nele o reconhecimento de nossas dores, a piedade, a compaixão, a humanidade, o elo com a vida.


Muitas vezes, uma mãe ou um pai, ao ver o filho pequeno tombar, diz:

- Não olha, que daí ele não chora!

É também com os nossos pais que nos permitimos as lágrimas mais sinceras depois de uma grande perda. O emprego que se foi, o fim do namoro, o assalto. Calamos a dor até que, aos sermos olhados por eles, desatamos o nó.


Sim. Choramos quando os outros nos olham. Nos percebem. Sem o olhar do outro, muitas vezes seguimos sem declarar nossos infortúnios, temendo o tamanho da dor das nossas feridas.


Foi assim com Brenda ao ser olhada por Alex, que heroicamente a devolveu a dignidade de ser ela mesma, de ter uma mãe a sua espera, analfabeta como o seu próprio redentor, de ser indefesa como todos somos na infância e em outros momentos da vida.

A dignidade de Alex em devolver a Brenda sua própria identidade fez com que outros o percebessem na sua juventude entrecortada de pequenas tragédias que nem sempre valem a manchete do jornal. Que alguém olhe por ele.

Segue o depoimento dele ao jornal Folha de São Paulo:


“Tenho 17 anos, sou órfão, analfabeto e trabalho como repositor de estoque numa bomboniere. É meu segundo emprego. O primeiro foi de camelô, na 25 de março. Mas cansei de correr do "rapa" (batidas policiais).


Conheço Brenda desde que nasceu. É que somos vizinhos. Meu padrasto, que é pintor, foi à Bahia. Minha mãe, empregada doméstica, morreu quando eu tinha 12. Meu pai nem sei quem é.


No fim de semana estive em Aparecida, com amigos. Fizemos uma corrente na sala dos milagres para essa menina. Levei até uma foto.


Às vezes, toco bateria na igreja, mas não sou religioso.


Estava conversando com minha patroa sobre a viagem quando olhei pra rua e vi a Brenda apontando o dedo pra mim. Magra, suja, de touca e com o cabelo recortado.


Foi um milagre, era para eu estar no depósito. Aí até brinquei: "Essa é a menina que sumiu". A patroa falou: "Não é ela não". Daí, pedi permissão e saí.


Fui correndo e encontrei os dois parados na lanchonete ao lado, pedindo comida. Nervoso, falei alto: "Essa menina você roubou". O desconhecido, que parecia um morador de rua, respondeu: "Não, é minha filha, vou buscar o RG dela na carroça".


Daí, de repente, ele saiu correndo. Agarrei a menina para ele não levar.


Quando ele foi embora, ela começou a chorar, acho que com medo de ficar sozinha. O pessoal saiu atrás, mas não conseguiu pegá-lo. Uma mulher acalmou a menina.


O PM veio e pegou meu RG. Falei: "E agora? E se não for a menina?" Perguntamos seu nome e ela respondeu.


Mas foi pela TV que eu soube que era ela mesmo, quando o PM apareceu dando entrevista. Meu patrão comentou: "Você a achou, mas olha quem está recebendo saudação". E o pior, dizia que a achou numa outra rua.


Fui à delegacia e falei que o rapaz estava mentindo. Quando o encontrei, ele disse que já tinha falado tudo e não precisava de mais nada.


Mas o circuito de câmeras da loja registrou a cena inicial, e quando mostrei ao delegado, começou a confusão toda de novo. Assinei um boletim de ocorrência. (Questionado pela Folha, o delegado Paulo
Cesar de Freitas, do 6º DP, no Cambuci, diz desconhecer a confusão.)


É claro que me senti um herói. Mas por várias vezes já chamei ambulância para ajudar, quando vi acidente na rua. Meu sonho era ser bombeiro, mas vai ser difícil.


Às vezes, fico pensando na vida, vem tudo, o serviço, minha mãe, esse negócio da alfabetização, caramba, tudo numa pessoa só, foda.


Para mim tudo continua na mesma. Quem agora precisa se salvar sou eu.”



Depoimento à Folha de São Paulo, publicado em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1111147-jovem-conta-como-encontrou-menina-desaparecida-em-sp-leia-depoimento.shtml.






Foto Joel Silva/Folhapress

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Educação conect@da: os desafios impostos aos pais



Sou de uma geração nascida e criada antes da internet, o que incluiu aulas de datilografia na adolescência e laboratório de redação com máquinas não elétricas na faculdade. No último ano, se não me falha a memória, tivemos acesso aos primeiros computadores da universidade, que eram grandes caixotes capazes de “datilografar”os textos, mais rápido.

E foi assim, já na década de 90, que a modernidade chegou, junto com os celulares do tipo tijolo e os bips. Nunca tive um bip, mas bipei muita gente por aí. No trabalho, ainda usei por muito tempo o aparelho de fax, que hoje só serve quando a gente quer tirar uma xerox ou pedir uma fatura extraviada. São peças de museus que eram hits a apenas duas décadas atrás.

No computador, a gente escrevia a matéria, usava disquete, salvava na rede, mas nada, nadinha de internet. Para comunicações estilo msn, era comum ter um arquivo oculto onde teoricamente você poderia mandar bilhetinhos que teoricamente só seriam lidos pelo destinatário, na hora que você saísse do documento, é claro.

Mais tarde, Uol e mais algum outro site lançaram os chats. Meu Deus! Para amores incuráveis cuja madrugada era curta e a conta telefônica muito longa, era o paraíso. Hora tal, sala tal, cidade tal, codinome tal e sorte na conexão discada, porque podia cair a qualquer momento. E foi assim que comecei a usá-la, trabalhando em redação e terminando o ofício de contar histórias em casa (muitas delas salvas em disquete!).  Mas os anos passaram e a tecnologia velozmente tomou conta da nossa vida profissional e pessoal. Orkut, twitter, facebook, linkedin. Ainda dá para saber quem veio primeiro mas duvido que os nossos filhos saberão.

As fotos do primo estão na internet, a atualização de status da melhor amiga, também, o último encontro do grupo, a mudança de emprego do colega, as notícias da última hora (opa! do minuto, por favor), as discussões importantes, os aniversariantes do dia. Meu trabalho está lá, na internet. Minha agenda, também. Algumas coisas já foram salvas nas nuvens e as fotos e crônicas perambulam por aí compartilhando angústias e alegrias.

Mas, em um lugar, a presença dela anda me perturbando, em vez de ajudar: na infância do meu filho. Tentei poupá-lo ao máximo por achar que ele ainda não é maduro suficiente para compartilhar ou gastar sua vidinha naquele espaço. O plano de internet residencial completará dois anos, em outubro. Antes, só eu acessava. Além do medo de pedófilos e coisas assim, tenho receio do cyberbulling, da perda de tempo e dos diálogos invasivos na rede.

Nosso combinado atual libera duas manhãs conectado, o que inclui uma modesta conta de msn,jogos, tabela de campeonato e youtube, e algumas horas no final de semana. Ele bota para quebrar, nestes momentos, e, muitas vezes quer deixar o parque para depois assistindo vídeos de outros players. Então, imagino que ele, no domínio de um perfil, não deixará passar batido nada.

Mas isso deixou de ser suficiente pela pressão dos colegas e porque meu rapaz é um curioso nato. Agora, o bordão do momento é: quero uma conta no facebook. E todo dia uma negociação enorme adia o desejado, mesmo que haja argumentos contrários, como a necessidade desta geração ser mais interativa do que a minha, as tecnologias que deverão ser dominadas por eles estarem além do meu alcance de consumo e visão, a presença dos amigos e parentes na rede, entre tantas outras preocupações.

Um dia desses, depois de mais uma acalorada discussão no mundo real, fui buscar ajuda com os especialistas. E li Rosely Sayão, que fala desta geração que vive presa na vida real e livre no mundo virtual, onde nem sempre sabe proteger sua intimidade e privacidade. Para ela, o desafio dos pais é ensinar a interatividade no dia adia, na padaria, na escola, na casa dos parentes e garantir que as redes só serão usadas no momento em que elas terão maturidade suficiente para escolher também as suas companhias virtuais.

E é assim que Tomás terá que se contentar com uma educação não tão conect@da diretamente às redes sociais, mas ainda esperando que haja espaço para o limite, a paciência e o tempo ideal de cada coisa.

Um dia irá acontecer, mas que não seja amanhã.

Crédito da foto:Shutterstok

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Consciência de cada um

Para amenizar a rotina do filhote, que estuda à tarde e três vezes por semana, pela manhã, sai cedo para a casa da avó onde é levado às atividades extras, tenho uma ajudante que fica com ele duas vezes por semana. A ideia é que, nestes dois dias, ele não precise acordar tão cedo e não lamente tanto deixar as cobertas. Porque é sofrido para nós dois. Acorda emburrado e de péssimo humor. Mas, desde que a ajudante começou, no início do semestre, foram poucas as vezes que sai de casa sem que ele já estivesse desperto. E ele acorda com a corda toda, feito um grilo falante ou um cachorro em dia de passeio no parque.


Dias atrás, quando me disse bom dia, eu pedi para que ele perdurasse mais na cama e ouvi:

- Mãe, eu descobri que não tenho dono.

- Sei...

- A minha dona é a minha consciência e fazer o que se ela me manda acordar para aproveitar melhor o dia?

- E ela manda você estudar também?

- Não. Minha consciência é minha e não sua, mãe. Ela quer que eu brinque muito.


E seguimos cada um com a sua consciência. A minha sempre me faz perder o sono por motivos que, aparentemente, não serão solucionados na madrugada. Como, às vezes, eu gostaria de ter somente oito anos...

terça-feira, 5 de junho de 2012

O que importa



Uma intensa rotina de trabalho, com mais de 12 horas fora de casa, me afastou do blog e de outras coisas mais. Faltou tempo para a gentileza, a criatividade e a observação. Mas, se é temporada de matar um leão por dia, é preciso se perdoar das ausências e se reconhecer na coragem de quem levanta cedo da cama.

Depois dos 30 e poucos, já fiz e refiz muitos ciclos e sei que eles duram apenas o suficiente para nos mostrar novos caminhos e que a vida é adaptação. Nestes momentos, não podemos nos esquecer do que importa e o que importa não é o que está fora, mas o que a gente guarda aqui dentro.

Em um dia, a gente desmonta o quebra-cabeça que aos poucos se encaixa tão bom e resolve montá-lo de outra forma. Porque só no brinquedo infantil é que as peças se agrupam apenas de uma forma. Na vida real, é possível montar de várias formas, usando ou não todas as peças.

E, como é dia de retomada, vou compartilhar uma história de João Pedro que me faz lembrar o que importa. A mãe dele, minha colega de profissão, Ana, sempre troca figurinhas comigo. Dividimos o espanto diante da construção do ser humano e a admiração pela autonomia com que eles vão se esboçando homens na nossa frente.

Dia desses, o pequeno da Ana, enquanto cumpria a ingrata tarefa de escovar os dentes, saiu com essa: 


- Mãe, sabia que este corpo não é meu. Deus só me emprestou. O que eu sou mesmo é o que tem dentro dele.

xxxx
E é por ser um empréstimo, que devemos fazer um bom uso dele, seja na hora de enfrentar uma jornada intensa de trabalho ou na hora seguinte, quando acolhemos em nossos braços quem amamos. E é preciso saber, como João Pedro, que o que importa de fato é o que está além do reflexo no espelho.

sábado, 31 de março de 2012

Manual de uma princesa


Para ser uma princesa, não é preciso carregar coroa ou cetro brilhante, mas ter nos olhos o brilho de quem sabe.

Para ser uma princesa, não é preciso sair de um conto de fadas, mas crer nelas piamente.

Para ser uma princesa, não é preciso ter berço de ouro, mas escolher os braços ideais para lhe acolher o sono.

Para ser uma princesa, não é preciso sorrir sempre, mas ter lágrimas que comovam.

Para ser uma princesa, não é preciso ter destino mágico, mas ser mágica para quem a tem como destino.

Para ser uma princesa, não é preciso sempre dizer sim, mas abraçar quem te escolheu.

Para ser uma princesa, não é preciso de lorotas sobre príncipes ou saias bufantes e rosas, mas buscar o final feliz.

* A princesa Elisa, em registro alegre de Adriana Cândido.

segunda-feira, 5 de março de 2012

De olhos fechados

Catedral de Porto Nacional


Na vida, são muitos os lugares que se tornam parte das nossas histórias: a nossa primeira casa, o quarto da infância, a praça das primeiras brincadeiras, a escola de pátios enormes diante da sempre pouca estatura dos pequenos, a escadaria dos primeiros tombos, a praia de areia branca e águas seguras... E assim seguem sendo em nossa memória, revisitada na hora da saudade, encontrada na página dos álbuns, relembrada nos almoços de domingos.

Os lugares se tornam tão fortes e abrigam tantas lembranças, que seu cheiro, cor e tamanho tomam forma de gente, de amigo querido e saudoso, de aconchego e de encontro jamais esquecidos. E, nos sonhos, no inverso do que acontece na vida, são eles que nos visitam. E é assim que acontece, nas minhas noites de muito sono, em que a casa dos meus avós retorna para ser morada dos meus sentimentos. De olhos fechados chego ao quarto reservado para as visitas, pulo a janela da cozinha, tomo banho no tanque, sujo meus pés no piso encerado de vermelho,bebo água fresca do pote de barro, me refaço menina na terra da minha criancice.
Vó Ana, Mariana, Ana Maria e Andressa

Na rua que levava para o rio, na esquina com a ladeira, em Porto Nacional (TO), o casarão com janelas e portas pintadas de verde era a morada das minhas férias de julho e dos feriados mais longos do ano. Lá, meus avós Ana e Sabino, minha tia Maria José, a ajudante fiel Celina e minha prima Ana Maria nos esperavam de braços abertos, do alto da escada, enquanto descarregávamos a bagagem depois de uma noite inteira de viagem de ônibus.

Eram 30 dias em uma das cidades mais quentes do País, mas cujo calor era abrandado pelas águas frias e limpas do Tocantins, antes da barragem. Descíamos diariamente a ladeira para brincar na beira da água, ver os mais aventureiros pular dos paredões formados por pedras na margem do rio, fazer castelos com gotinhas de areia molhada, recolher as pedrinhas do fundo do rio, atravessar de “voadeira” em direção à ilha...
O pôr-do-sol mais lindo que já vi


Também era tempo de encontrar primos e tios, vindos de várias partes do Brasil, para dividir os dias, a mesa, a comida caseira da avó, as damas do meu avô, o chamego dos bichanos espalhados nas cadeiras feitas de fio, o espaço para sentar na escada da sala, o cheiro do biscoito frito no fogão à lenha, a ida na missa no final do domingo, o cocoricó das galinhas no fundo do quintal, a infinidade de visitas que lhe conheceu os pais ainda crianças.
Ana Cristina, eu, Marcelo e uma amiga
Ana Maria, vó Ana, Joaquim,
Maurício, eu, Maria e Pedro

E os primos eram um capítulo a parte, porque eram de todas as idades. Dos mais novos aos mais velhos, era imposta a nós a regra da convivência, da boa convivência. Uns protegiam os outros e ensinavam as regras, as possibilidades, o mergulho mais fundo, o esconderijo melhor, o nado mais ágil.

Nos lugares mais distantes, vou de olhos fechados encontrar a alegria e o aconchego dos meus tempos de menina, a água fria do rio, os braços quentes das pessoas queridas, as brincadeiras na rua do Cabaçaco, o som do rio no fundo da rua, o cheiro das mangas no quintal, as estripulias dos amigos, os dias infinitos e a memória que ainda alimenta dias felizes da minha vida.
O famoso paredão


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Por toda a vida

Tomás é neto único, o que lhe confere direitos exacerbados, quando o assunto é a avó. É ela quem lhe prepara o leite com o toddy e entrega na mão até hoje, que lhe amarra os cadarços e o enche de mimos sem fim. Eu, às vezes, desconfio que isso pode lhe estragar, mas... Eu sinto muita falta de ter tido algo assim da minha avó para reclamar. E dos mimos também fazem parte longas caminhadas, conversas intermináveis e reflexões que o acompanharão por toda a vida.

Dias desses, ela veio me contar sorrindo o diálogo travado durante a última caminhada:

- Vó, por que você tem salário se não trabalha?

- Ah, mas a vovó já batalhou muito para sustentar sua mãe e sua dinda. É a minha recompensa.

- Vó, você batalhou quando? Foi na Segunda Guerra Mundial?

É claro que ela gargalhou muito e contou um pouco sobre sua vida, sobre seu trabalho e sobre a aposentadoria.

Mas, outro dia, de mala e cuia para dormir na casa da vovó, ele volta aos livros de história e pede:

- Vó, me conta uma história antes de dormir!

- Tomás, a vovó não conhece história nenhuma.

- Então, me conta aí alguma coisa que você viu na época da ditadura militar.

Assim caminham os dois entre palavras e sentimentos construindo laços, refazendo passados imaginários e dando importância ao que tem relevo na vida.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

17 de fevereiro


17 sempre foi meu número favorito.

Por um triz de segundos não nasci na data e fui cair lá em um dia 18.

Agora 17 é referência da saudade, repetição, recomeço, refazer das malas.

Quatro vezes. E a vida ainda demora a ganhar.

Quanto tempo dura uma saudade?

A cada dia me distancio mais dos meus cinco anos e a cada dia me lembro com mais clareza daqueles dias.

Me lembro da janela pronta para pular, do nosso baú azul, da antena de TV ajeitada com um bombril, dos móveis de madeira do quarto da boneca, do uniforme amarelo.

Fico horas a divagar em cenas corridas na mente. A mordida do cachorro, a bicicleta também azul, a máquina fotográfica, os abacates enterrados na areia, o monte de revistas, o medo, a gargalhada, o tempo.

Viagem que se faz de volta nunca é tão rápida como a ida. Se demora mais a chegar.

Quando volto lá atrás, me encolho, viro pequena. Sou filha e não, mãe. Debruço em cadernos antigos para reler palavras soltas, choro dores ancestrais, peço colo, bendigo presenças ausentes, ainda pulo, ainda grito.

Mas não chego nunca onde gostaria de chegar. A viagem ao seu encontro não tem fim. É doce, mas às vezes dura. É amorosa, mas destes amores que se vive só. É perigosa, posto que é na contramão da vida.

Volto para os 20 poucos anos que um dia tive. Cabelos mutantes. Desejos também. Ideias organizadamente dispersas. Certezas tão incertas como a chuva. Paletó xadrez. Vestido azul.

Fico horas a dançar de novo contigo a valsa da minha formatura. Seus olhos vermelhos. Minhas dúvidas. A música que alegra. Os meus sonhos românticos. O começo do fim.

Acelero. Descompasso. Abro a caixa. Olhos as fotos. Revejo você no meu mar de lamentos. Refaço histórias e dou a elas o significado do meu amor. Livre autoria para o sentimento que nunca terminou.

Dou respostas por você. Invento nossas verdades. Te compro uma flor. Te rezo um terço. Ouço tuas músicas.

Me refaço das lágrimas e sigo o caminho de quem já passou.

Se você pudesse ouvir, pai, te diria sobra a falta que você me faz e como 17 ainda é o meu número favorito, por ser dia de encontrar as tuas memórias.

*Caetano e a música que embalava nossos passos.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Condicionário

Tenho um projeto de homem em casa, sagitariano, firme, nem sempre valente, tagarela, alegre e voluntarioso. Para ele, as horas não foram feitas para serem atendidas, mas para atendê-lo. Então, enquanto a mãe gostaria que ele adiantasse as atividades, ele gostaria de alongá-las, em especial, àquelas que o fazem gargalhar.

Para cada ordem bem dada (e uma mãe com ascendente em sagitário também o sabe fazê-lo) há uma firme vontade de questioná-las, revidá-las, burlá-las, refutá-las, esquecê-las, negligenciá-las. E para cada desdém, uma pequena guerra se arma no seio familiar: “porque você não fez a tarefa, porque você não limpou a pia, porque você não amarrou os cadarços, porque você não terminou o almoço, porque você não me atendeu”.

E para cada porque, uma porção de perguntas e intermináveis ideias de como poderia ser uma boa negociação entre os grandes e pequenos. “Mãe, mas ainda falta meia hora para começar a aula, não posso tomar banho depois?”; “Sabia que na Itália não se come arroz?”; “Mãe, eu também me esqueço das coisas, ou acha que é só a vovó?”.

Mas como não dá para ceder à sedução do pequeno insolente, é preciso ensinar a lição mais difícil e mais simples da vida. “Toda ação produz uma reação”. E dali brinquedos recolhidos, desenhos suspensos, tarefas refeitas, pedidos de desculpas, lágrimas e trepidações nos corações de ambos.

Eis que, dia desses, depois de assistir a uma aula de karatê impagável com os lutadores mais insubordinados do tatame, eu lhe avisei que não teria como liberá-lo para ir à casa de um colega.

- Não é possível!

- Meu filho, estamos em pé de guerra e você quer passear? Vamos ver se você consegue fazer a tarefa de casa direito para depois voltarmos ao assunto, certo?

- Ah mãe, aí você exagerou no condicionário!!!

Educar os filhos com equilíbrio, sobriedade e eficiência é o sonho de todas as mães. Mas nem sempre é possível. Exageramos, invertemos prioridades, erramos, mas não podemos nos esquecer de que a única ação que não requer condição é o amor, incondicional aos filhos. Amor que deve ser suficiente para suspender as negociações quando necessário, mas para torná-las ferrenhas diante de uma intuição mais forte. Sigo tentando aliviar no condicionário, enquanto ele segue tentando evitá-lo.

(A tarefa bem feita cumpriu o propósito de lhe garantir liberdade “condicional” para ir na casa do colega).





segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Salário maternidade


Era noite de domingo, calor lá fora, estrelas brilhando no céu, jornada de carinho vivida intensamente com quem se ama  e em noites assim, um menino de oito anos costuma pedir para dormir na minha cama. E como uma amiga querida me disse que eu devia aceitar, porque logo ele não pedirá mais, eu às vezes aceito.

E é lá na imensidão da cama, com o céu a nos vigiar da janela, entre uma página e outra do livro lido em conjunto, que ele me diz:

- Eu acho que o governo deveria pagar um salário para você ser mãe.

- É mesmo? E por quê?

- Porque mãe tem muito trabalho, tem que cuidar do filho, das coisas do filho, das coisas da escola, das coisas dos amigos do filho. Tem que levar no médico, lavar a chuteira, ensinar a ser educado. E tudo isso é muito importante.

- Sim, eu concordo. Devíamos mesmo ter uma ajuda grande para cuidar de vocês.

- Afinal, eles não dizem que as crianças são o futuro do país?

- Eles dizem... E este salário seria até quando?

- Hum... Até o filho ter 40 anos, acho que está bom.

 Nunca sei como terminar os diálogos com o Tomás, então deixo no ar, até que ele venha me perguntar sobre como surgiram as estrelas, o que farei amanhã cedo ou porque “o céu é assim”.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Recomeço

Estes dias têm sido de recomeço em casa. Depois das férias, é hora de voltar ao trabalho, levar a criança na escola, acompanhar as tarefas de casa e... falar com ele sobre a disciplina.

Logo ao voltar para a sala de aula, agora no 3° ano, diante da minha orientação sobre bom comportamento e sobre como se apresentar à nova professora, Tomás me diz:

- Mãe, não se preocupe que se o primeiro dia for bom, todos os outros serão.

O primeiro dia foi ótimo. Ela deixou que ele se sentasse ao lado do amigo, direito perdido em 2011. Então, voltei as recomendações para que ele não conversasse tanto, ouvisse bem a professora e se comportasse para garantir o lugar conquistado pela benevolência da primeira impressão.

Então, depois de cinco dias de aula, eu pergunto:

- Filho, está controlando a conversa em sala?

- Sim, mãe, mas tá difícil me controlar.

- Ô, meu bem, você precisa prestar atenção na aula.

- Eu sei. Tô pensando em escrever uns bilhetes quando me der vontade de conversar com os meus amigos. Você me dá um bloquinho?

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A lista


Nunca sabemos quando seremos visitados por uma lembrança e este é um dos maiores espetáculos da vida. No meu penúltimo dia de férias e na véspera do Tomás voltar para casa, fomos juntos à escola. Além de conhecer a nova professora, eu precisava explicar a ela que os materiais escolares do pequeno chegariam com um ou dois dias de atraso, porque estavam na responsabilidade do pai e eu acabava de chegar de viagem.
Então, ela me deu a lista atualizada dos materiais para que eu checasse antes de levá-los para a escola, o que pudemos fazer horas depois com a chegada das sacolas com os itens solicitados. Mas, diante da lista, só o que pensei foi naquele cheiro da máquina xerográfica me fez lembrar os meus 8 anos. Ah, como era bom percorrer os olhos naquela lista e esperar que minha mãe cuidasse para que tudo estivesse lá na véspera do começo das aulas. Eu gostava tanto que lia até a lista das outras séries, em especial os diferentes materiais de artes. E quando chegavam, ah, que festa! Eu me lembro de percorrer as mãos em cada página de livro, de namorar os lápis coloridos, de enfileirar os cadernos, pensando que no futuro queria mesmo era ter uma papelaria.
Naquele tempo, eu acreditava que a papelaria era o lugar onde tudo era novo e adorava o cheiro e as cores organizados nas prateleiras deste tipo de comércio. Como bem lembra minha mãe, as opções em Goiânia eram poucas, Casa do Colegial, Maçã Verde, Casa do Estudante. E se os preços  e o volume de pedidos hoje assustam os pais na hora de fazer as compras, na época, devia ser bem pior. A inflação carcomia o salário, o 13° e as economias dos responsáveis por manter os suprimentos em dia dentro de casa.
Mas eu, com 8 anos, não queria saber de nada disso. Aquele era o único momento do ano em que eu recebia, ao mesmo tempo, várias coisas novas. E então, antes que as aulas começassem e tudo se tornasse o banal de todos os dias, eu vestia em cada livro, lápis e caderno uma embalagem imaginária de presente e me vestia de aniversariante fora de época. Era só o dia começar para que tudo ficasse esparramado em cima da cama e fosse admirado por vários ângulos.
E hoje, já com os livros do Tomás prontos para serem encapados, dividi com ele esta sensação de prazer pela novidade, pelo que será vivido nos próximos meses da vida dele, pelo que nos é tão caro na educação dos nossos filhos e muitas vezes tão pouco compartilhado. Folheamos os livros e imaginamos o que virá. E que venha para fazer história na vida dele e possa um dia ser uma bela lembrança. 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Pequeno filósofo


- Mãe, o que acontece depois que a gente morre?


- Filho, eu acredito que a gente faz uma viagem para outro plano, um lugar melhor, mais bonito, onde Deus habita.

- E você acredita que o vovô tá viajando ou já chegou lá?

- Ah, filho... Com certeza, ele já está lá.

- É (pensativo)... Na vida, duas perguntas importam: como é e como vai ser?

Vai encarar o meu filósofo mirim? Eu, por aqui, estou tendando responder.
 
*Escultura em alúminio do arte-educador Professor Sassá em sua
versão para a obra "O Pensador", de Rodin.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Lista 2012

Impossível resistir a tentação de fazer uma lista no começo de ano como resisti no ano passado. Em 2011, tentei responder as muitas perguntas de um filho que continua crescendo  e da vida sempre grandiosa à nossa volta. Foi, assim como previ, um ano de muitas respostas. Nem sempre boas, nem sempre honestas, nem sempre felizes. Mas respostas que me fizeram mais inteira.


Agora é tempo de olhar para o novo, mesmo que a mudança maior esteja na nova agenda, na nova folha do calendário, no nome da nova professora. Há que se ter esperança que não é apenas o ano que muda, mas que aqui dentro uma esperança fundamental me permitirá executar muitos planos. E se tiver uma ajudinha de um sal grosso para jogar longe o mau olhado será melhor ainda.

Lá vou em em 2012, tentar:

- Cuidar de quem eu amo tendo mais zelo do que os ponteiros do relógio;

- Contemplar o entardecer;

- Caminhar;

- Sentir o sabor do sorvete favorito, do almoço esmerado da minha mãe, do pão mais crocante, do drink do meu amor;

- Inverter o tempo para priorizar o que é importante: afeto, carinho e cuidado;

- Desligar sempre que possível, porque bateria de gente também termina;

- Fazer uma faxina nas prateleiras, gavetas e armários da casa e da vida. Às vezes é preciso deixar ir o que não mais edifica, o que não mais faz sentido. E eu, pisciana do último decanato, preciso aprender o sentido da palavra desapego;

- Viajar até nas páginas de um bom livro;

- Ler para o filhote, que cada dia precisa menos de mim para esta tarefa;

- Fazer arte sem encomenda, apenas para quem eu amo;

- Dar as mãos;

- Erguer um castelo;

- Escolher o perfume ideal para um novo momento;

- Agradecer, agradecer e agradecer.